crime ambiental

Pulverização aérea de agrotóxicos mata abelhas e peixes, e adoece comunidades rurais

Produtores dos assentamentos da reforma agrária Chico Castro Alves, em Martinópolis, e Nova Conquista, em Rancharia, no interior paulista, estão perdendo a produção, a saúde e a vida com a chuva de veneno sobre suas cabeças que começou em 2016

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Avião agrícola usado para pulverização de agrotóxicos sobrevoa assentamentos no interior de São Paulo

São Paulo – A pulverização aérea de agrotóxicos está matando abelhas e peixes e trazendo doenças e mortes às comunidades dos assentamentos Chico Castro Alves, em Martinópolis, e Nova Conquista, em Rancharia, no interior paulista. A situação dramática foi relatada pela representante dos produtores Bianca Santos Lopes, em entrevista à RBA.

“Meu vizinho perdeu mais de 100 colmeias só nesse ano. Fora o que perdeu em dezembro, novembro e meses anteriores”, lamentou a assentada da reforma agrária. Segundo ela, o apicultor já vinha tentando, sem êxito, mover processo contra a usina Atena, com canaviais no entorno. O desgosto é grande, segundo ela.

Esse produtor havia abandonado a produção leiteira justamente porque a meliponicultura é mais rentável. E devido à mortandade das colmeias, desistiu de uma linha de crédito obtida por meio do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). “O dinheiro vai ficar parado no banco, porque não há intenção de pegar para investir em algo que sabe que vai perder”, disse a liderança.

Outra perda, segundo relatou, é a da criação de peixes. Um assentado perdeu recentemente mais de uma tonelada deles, que seriam vendidos na semana santa. “Os venenos que mataram esses peixes todos são os mesmos despejados em cima de uma nascente do rio Laranja Doce, que vai direto para o balneário onde as pessoas se banham. É um veneno muito forte. Atinge pessoas a mais de quatro quilômetros, que têm vômitos, diarreia. mas têm medo de denunciar”.

Pulverização de agrotóxicos sobre assentamentos é crime

Os assentamentos Chico Castro Alves e Nova Conquista participam da maior bacia leiteira do pontal do Paranapanema. E são responsáveis pelo abastecimento do Ceasa de Presidente Prudente. Juntos têm mais de 55 estufas de olericultura, ramo que inclui legumes, frutas, verduras, mandioca e produção de pomares. E se não fossem as pulverizações de agrotóxicos sobre suas cabeças, teriam também produção de orgânicos.

Segundo a Lei 9.605/98, é crime ambiental causar poluição de qualquer natureza em níveis tais que resultem ou possam resultar em danos à saúde humana, ou que provoquem a mortandade de animais ou a destruição significativa da flora. E segundo a Instrução Normativa 2/2008 do Ministério da Agricultura, que rege a atividade de pulverização de agrotóxicos, é proibido pulverizar em áreas situadas a uma distância mínima de 500 metros de povoações, cidades, vilas, bairros, de mananciais de captação de água para abastecimento de população. E também a 250 metros de mananciais de água, moradias isoladas e agrupamentos de animais, como é o caso das escolas e colmeias de abelhas afetadas.

Como contou Bianca, o problema começou em março de 2016, quando aviões a serviço da da usina Atena começaram a sobrevoar essas áreas, inclusive vilas da cidade, despejando nuvens de veneno. Pouco tempo depois surgiu uma epidemia de conjuntivite que não poupou ninguém, nem bebês. A infecção se manifestava de vários tipos, hemorrágico. A própria filhinha de Bianca, na época com oito meses, foi infectada.

“Ela ficou internada por oito dias. E na sequência, já teve pneumonia mesmo sem ter tido gripe ou resfriado antes. O pulmão foi afetado pelo veneno. Na época, em um único dia, uma médica chegava a atender por dia 80 casos de conjuntivite, diarreia. Tudo era diagnosticado como virose. Ninguém fazia a correlação com o veneno”, disse.

Animais doentes e plantações que não vingam

No entanto, desde então animais começaram a morrer. Vacas, bezerros, e também bichos de estimação. E passaram a surgir casos de diversas doenças, inclusive de câncer. A pulverização de agrotóxicos passou então a ser associada à causa de muitos problemas. E alvo de enfrentamento e denúncias, geralmente acompanhados de ameaças. ”A usina tem potência, força, emprega as pessoas. Então lutar com quem tem poder… pequeno lutar com grande, fica difícil”, disse Bianca.

Para complicar, de um tempo para cá já não é só a usina Atena. São também os vizinhos que plantam algodão e soja com uso de veneno. No entanto, as reclamações não são atendidas. “Somos sempre mal tratados. Policia ambiental nunca fez questão de vir até o local para fazer um boletim de ocorrência, fiscalização, nada.”

Enquanto isso, levantamentos nos assentamentos foram mostrando piora na situação. “Muita gente doente. Estamos perdendo a nossa força de trabalho muito rapidamente. Nossos animais adoecendo. Nossa plantação não vinga. Está se perdendo muita coisa. Temos surtos de praga por causa desse uso indiscriminado de agrotóxicos que matam umas pragas e outras não. Isso potencializa as pragas resistentes”, afirmou.

“Há surto de moscas de chifre nos assentamentos, de mosca berneira. Não tem condição de produzir quando tem cigarrinha e lagarta da cana atacando nossos milharais. Elas fogem das lavouras atacadas por venenos e atacam nossa produção de olerocultura. Nossos animais não têm paz, nós não temos paz e estamos perdendo nossa saúde física e mental”.

Pulverização de agrotóxicos é mais que crime ambiental

“Estamos vendo nossas crianças, pais, irmãos, comunidade, ficando doentes e morrendo à míngua. Por ser uma comunidade rural, é difícil a assistência aqui, até pelo SUS. O atendimento é complicado. Tem uma médica do SUS que vem atender uma vez por semana, em um salão de uma igreja” uma vez por semana, às terças, em atendimento difícil para todos”, disse Bianca.

Quando há surto de intoxicação, uma única médica tem de atender 80, 100 pessoas em meio período, em local inadequado. Faltam condições mínimas, como para aplicar um soro, ou mesmo tirar as roupas do paciente para examinar irritações na pele. “É desumano o que está acontecendo com a gente, que já tem um histórico de abandono”, lamentou.

Para ela, mais que um crime ambiental, a pulverização aérea de agrotóxicos é uma das estratégias adotadas pelo agronegócio predatório para exterminar as comunidades assentadas. O objetivo é a concentração de terra. Isso para expulsar ou mesmo eliminar os pequenos agricultores por meio dos riscos à saúde, ao meio ambiente e os ataques à produção. “Temos inúmeros jovens, crianças, idosos doentes com câncer, doenças de pele. Crianças nascendo com distúrbios. Isso é muito grave”.

Plano do agronegócio é ‘exterminar’ agricultura familiar

Além disso, há o aspecto fundiário, com claro assédio dos grandes proprietários de terras vizinhos sobre os pequenos produtores. Segundo Bianca, em 2022, pouco antes da eleição, um representante do Incra, esteve nos assentamentos juntamente com o pessoal das usinas. Em reuniões, tentaram convencer os assentados a arrendarem parte dos lotes (até 80% deles) para o plantio de cana.

“Em troca ofereciam emprego para os filhos dos assentados, benefícios para a comunidade, ajuda na melhoria de estradas. Enfim, inventaram histórias. Mas nossa documentação com o Incra impede que arrendemos nossas terras até com vizinhos. Somos agricultores familiares e temos obrigação social com a terra, de produzir”, disse.

Segundo ela, os assentados se rebelaram nesses encontros, pois jamais aceitariam uma situação dessas. Ao contrário, propuseram arrendar por 11 meses ao próprio vizinho, assentado como ele, em troca de reforma do pasto. Ou em tempo menor, por três meses, para o colega assentado produtor de amendoim.

Bianca compara a situação vivida pela agricultura familiar no Brasil à dos povos indígenas. “Não é só a usina. Estamos com pessoas intoxicadas, há perdas financeiras e os produtores vão falindo. Até desistir do lote, passar para outro de forma ilegal. É o discurso que os ruralistas defendem: que a agricultura familiar e a reforma agrária não querem produzir, sendo que na verdade estão matando a gente aos poucos. Tudo o que a gente quer é produzir. Não queremos arrendar o lote. Além de produzir, todos querem é que parem com essa pulverização. Queremos produzir com saúde”, disse.

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