“É uma grande decepção”, diz parente de vítimas de Curió

Presidente da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos da Secretaria de Direitos Humanos estranha rapidez de juiz, que em dois dias arquivou ação contra coronel da ditadura

São Paulo – “É uma grande decepção”, diz Aldo Corrêa, economista, 61 anos, antes de começar o desabafo. Hoje (16), dois dias após a ação movida pelo Ministério Público Federal pedindo a condenação do coronel da reserva Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió, ele foi informado que a Justiça Federal em Marabá (PA) decidiu rejeitar a possibilidade de condenar o colaborador da ditadura (1964-85). “Apesar de já esperar que não haja juiz com peito para sustentar essa ação, a gente fica decepcionado.”

Pelo telefone, Aldo, morador do Rio de Janeiro, lamentou que o juiz federal João César Otoni de Matos tenha se valido da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Lei de Anistia para dar fim à possibilidade de levar Curió, acusado pelo sequestro de cinco militantes na década de 1970 na região do Araguaia, a sofrer uma condenação que poderia variar de dois a 40 anos. Em 2010, a maioria dos ministros do STF decidiu validar a leitura de que a anistia foi fruto de um amplo acordo da sociedade para virar a página da ditadura, o que, portanto, vetaria qualquer chance de punir torturadores por seus crimes.

O juiz Otoni de Matos não precisou de 72 horas para reiterar a visão. “Pretender, depois de mais de três décadas, esquivar-se da Lei da Anistia para reabrir a discussão sobre crimes praticados no período da ditadura militar é equívoco que, além de desprovido de suporte legal, desconsidera as circunstâncias históricas que, num grande esforço de reconciliação nacional, levaram à sua edição.”

Elmo Corrêa, visto pela última vez em 1973, e Telma Regina Cordeira Corrêa e Maria Célia Corrêa, desaparecidas em 1974, são os parentes que a ditadura roubou de Aldo, levando também a saúde de seus pais. “Não sei o que passa na cabeça deles de alegar que a Lei de Anistia considerou os desaparecidos como mortos. Isso é para eles. Para nós, familiares, não estão mortos. Se estão mortos, cadê o corpo? Como pode chegar a essa conclusão por mim?”, questiona.

Presidente da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Marco Antônio Rodrigues Barbosa também discorda da visão do magistrado. “É uma eficiência meio inusitada porque normalmente os processos demoram muito mais do que isso”, afirma. “O Ministério Público Federal tem razão no sentido de que por se tratar de crime continuado não há prescrição.”

Os seis procuradores da República que assinam a ação contra Curió tomam como base a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que em 2010 condenou o Brasil pelos crimes cometidos durante o episódio conhecido como “Guerrilha do Araguaia”, no qual grupos armados foram reprimidos pelas tropas de Curió. A sentença basicamente reafirma dois pilares da jurisprudência mundial de direitos humanos, que indica que crimes de lesa-humanidade são imprescritíveis. No caso do desaparecimento forçado, a Organização das Nações Unidas (ONU) entende que se trata de uma violação que não cessa enquanto não aparecem os corpos, ou seja, os crimes cometidos por Curió não chegaram ao fim. “Só pode ser medo dos militares. Não punir quem cometeu crimes bárbaros como este é deixar a porta aberta para fazerem de novo”, conclui Aldo. “Criminosos estão vivendo livremente, com patentes militares.”

O STF pode julgar na próxima semana o recurso apresentado pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contestando o resultado de 2010. A OAB lembra que o Brasil é signatário, por livre vontade, do Pacto de San José, o que significa que aceita as condenações impostas pela Corte Interamericana. O Uruguai, sentenciado depois, promoveu cerimônia na qual pediu desculpas oficiais às vítimas, o que o Estado brasileiro ainda não fez, e deu sequência à punição de responsáveis por violações de direitos humanos durante o regime autoritário. Em todos os países da região, as decisões da Corte serviram para fortalecer ou incentivar a revogação de dispositivos que serviam para impedir o julgamento dos casos. O Brasil segue como exceção. “Uma coisa que deveria ser levada em consideração é que é preciso que isso seja reaberto efetivamente porque existe uma pecha em cima das Forças Armadas que não deve ser assim”, diz Marco Antônio. “O Brasil ainda tem em dívida uma reconciliação com seu destino.”