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Para dar a volta por cima

Os países da América do Sul precisam superar diferenças e ter a integração na veia de suas políticas de governo

José Cruz/abr

Lula, Kirchner e Chávez: integração sulamericana é alternativa a um mau acordo dentro da Alca

A decisão do governo de Evo Morales, na Bolívia, de nacionalizar as reservas de gás e petróleo do país trouxe a política externa para a linha de frente do noticiário no Brasil – ainda que o debate tenha sido contaminado por uma fumaça de desinformação e preconceito em torno dos projetos que envolvem a América do Sul, onde a situação de desigualdades social e econômica é muito parecida entre os países do continente. A superação dessas desigualdades passa pela forma como se conduz a política, interna e externamente.

Segundo o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, secretário-geral do Ministério de Relações Exteriores, um dos principais objetivos da política externa do governo Lula é enfrentar essas desigualdades e reduzir as vulnerabilidades sociais, econômicas e tecnológicas do país. O Brasil é hoje uma das nações com maior concentração de renda do mundo, com cerca de 14 milhões de pessoas convivendo com a fome, e mais de 72 milhões vivendo em situação de insegurança alimentar – com nutrição inadequada em quantidade e qualidade. Ao mesmo tempo, o país possui a segunda maior frota de aviões e helicópteros particulares do mundo.

Esse quadro de disparidades é um dos principais problemas que prejudicam o desenvolvimento social do país. Em seu livro recém-lançado, Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes (Editora Contraponto), Guimarães define assim a orientação estratégica da política externa brasileira: “Os quatro grandes desafios do Brasil são a redução gradual e firme das extraordinárias disparidades sociais, a eliminação das crônicas vulnerabilidades externas, a construção do potencial brasileiro e a consolidação de uma democracia efetiva, em um cenário mundial violento, imprevisível e instável”.

Outras vulnerabilidades definidoras do que o Brasil é hoje, acrescenta o secretário-geral do Itamaraty, são a econômica e a tecnológica. “As viagens do presidente à África, ao Oriente Médio e a outras regiões tem entre seus objetivos justamente reduzir a vulnerabilidade a choques externos através da diversificação dos nossos mercados”, afirma Guimarães. O embaixador cita o caso da febre aftosa, que voltou a atingir o Brasil em 2005. O impacto da doença só não foi maior na economia brasileira pelo fato de a carne não estar entre os principais produtos de exportação e também pela diversificação da pauta de exportações e dos seus respectivos mercados.

Potencialidades brasileiras

Do ponto de vista tecnológico, Samuel Guimarães cita o recente caso da venda de aviões Super-Tucanos para a Venezuela, inviabilizada pelo governo dos Estados Unidos, que impediu empresas norte-americanas de fornecer certas peças vitais para o avião. Se a indústria brasileira não tivesse déficit tecnológico, a pirraça dos norte-americanos com o país de Hugo Chávez não teria melado um negócio de aproximadamente US$ 250 milhões. “Uma das condições para evitar a repetição de casos como este é o desenvolvimento das potencialidades brasileiras”, defende o diplomata. Essas potencialidades são raridade – quinto maior território do globo, décima maior população, um dos onze maiores PIBs. Apenas três países reúnem essas características: Estados Unidos, China e Brasil.

O desenvolvimento desse potencial também depende do cenário internacional, caracterizado por um ambiente de crescente violência e desrespeito às regras do direito internacional. “Os países mais fortes acham que têm não somente o direito, mas o dever de impor suas idéias e interesses aos demais, dizendo como eles devem se organizar e se comportar. Os princípios da autodeterminação e da não-intervenção não são aceitos por estes países e o que vemos hoje é um processo de enorme concentração de poder em nível internacional. A força militar dos Estados Unidos hoje equivale à força dos dez países seguintes somados”, assinala Samuel Pinheiro Guimarães. E os problemas não se reduzem ao poder político e militar.

Do total de patentes registradas anualmente no mundo, cerca de 90 mil, as empresas norte-americanas registram em torno de 44 mil, quase a metade. Isso resulta numa vantagem competitiva muito grande, pois as patentes significam, entre outras coisas, capacidade de produzir a um custo mais baixo. Um dos resultados do aprofundamento dessa distância entre os proprietários de patentes e os demais é o crescimento da concentração dos mercados, com a formação de oligopólios. Assim, assiste-se hoje a um imenso progresso científico e tecnológico no centro do sistema e a uma luta desigual dos países periféricos para diminuir essa distância. A política   externa tem de buscar um melhor posicionamento do Brasil no sistema internacional.

Necessidade regional

A emergência de um mundo multipolar – capaz de ampliar a possibilidade do país de desenvolver alianças com outras nações – interessa muito ao Brasil. O mundo tem hoje demarcada a formação de importantes pólos: América do Norte e América Central, capitaneado pelos EUA; a União Européia (estrutura que já conta com uma burocracia de 30 mil funcionários, moeda, parlamento e legislações próprias); e os países da Ásia, com destaque para a China, que há 20 anos vem crescendo a uma taxa média de 10% e já se constitui na quarta potência econômica.

A América do Sul ainda não conseguiu construir um processo de integração física. “Mais do que um desejo, a integração é uma necessidade”, defendeu o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, ao falar no 9° Congresso Nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT), no início de junho. “É importante que construamos esta integração pelo investimento comum, pela tecnologia, pela cultura, senão ela virá pelo contrabando, pelo narcotráfico e pelo crime organizado. Temos de pensar nisso com uma visão de longo prazo”, defendeu o chanceler.

A integração física da América do Sul é uma das prioridades da política externa do governo brasileiro, que tenta investir em iniciativas nessa direção: a construção da primeira estrada bi-oceânica, que vai possibilitar o escoamento da soja brasileira pelo Pacífico (via Peru), a construção da terceira ponte sobre o rio Orinoco (na fronteira com a Venezuela) e o projeto do Gasoduto do Sul, impulsionado por Brasil, Venezuela e Argentina. A decisão de apostar no Mercosul e na integração sul-americana colocou na geladeira a proposta de criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), defendida pelo governo dos EUA. “É melhor não ter um acordo do que um mau acordo, que nos causaria grandes prejuízos para reverter”, explicou Celso Amorim, referindo-se à Alca.

A construção da integração envolve um processo repleto de obstáculos. Em uma conferência realizada em Porto Alegre, para discutir a integração regional na América do Sul, o subsecretário de Integração Econômica do Ministério de Relações Exteriores da Argentina, Eduardo Sigal, defendeu que esses problemas derivam das quase duas décadas de políticas neoliberais no continente, que enfraqueceram os Estados e as economias da região. “Houve competição na América Latina para ver quem precarizava mais as relações de trabalho, quem flexibilizava mais a economia, quem abria mais os seus mercados”, resumiu. “Ou unimos esforços e trabalhamos juntos, ou não iremos a lugar nenhum”, concluiu.

Integração não virá por força de um destino, mas de projetos

úpula do G-8

A tese de que as dificuldades da integração na América do Sul devem ser abordadas a partir dos efeitos devastadores das políticas neoliberais dos anos 90 foi defendida pela professora Ana Maria Sanjuán, da Universidade Central da Venezuela, na Conferência de Porto Alegre. O evento foi realizado no início de junho pelas fundações Perseu Abramo (Brasil), Jean-Jaurès (França), Friedrich Ebert (Alemanha) e Pablo Iglesias (Espanha). Episódios como a implosão da Comunidade Andina de Nações, a nacionalização do gás e do petróleo na Bolívia e os conflitos entre Argentina e Uruguai em torno da construção de fábricas de celulose são, em boa medida, desdobramentos de sucessivas crises que enfraqueceram os Estados sul-americanos.

Segundo o assessor especial de Política Externa da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, a integração da América do Sul é “parte do projeto nacional de desenvolvimento do Brasil” e o Mercosul sempre enfrentou crises. “Enfrentamos hoje o problema das assimetrias regionais que não podem ser resolvidas por meio de uma simples união comercial. Entre os passos que precisamos dar agora, destacam-se a articulação produtiva, a criação de cadeias de valor, os investimentos em infra-estrutura e a implementação do parlamento”, defendeu Garcia. Um projeto de criação da Comunidade Sul-Americana de Nações, está pronto para ser analisado pelos chefes de Estado.

O desmantelamento de estruturas públicas já precárias lançou os países da América do Sul a mais uma corrida contra o atraso. Os obstáculos enfrentados na busca pela integração articulam problemas de política interna e externa.

“Os países andinos precisam ser integrados internamente primeiro”, exemplifica a professora Ana Maria Sanjuán. Mas o argentino Eduardo Sigal considera que não há tempo: “Há coisas que não terminam de desaparecer e outras que não terminam de nascer”. Para ele, essa confluência permanente entre velhos e novos problemas leva à compreensão de que a integração não virá por força de um destino, mas de projetos. Exige escolhas e decisões políticas para se efetivar.