voz periférica

Sérgio Vaz, criador da Cooperifa, completa 30 anos de carreira

Para o poeta, a arte da periferia vive sua bossa-nova. Há saraus, slams, coletivos, literatura periférica, negra, feminina. 'Poderia ser melhor, mas é muito melhor do que era'

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Sérgio Vaz: ‘De onde eu venho, nem todos completam 30 anos de idade. Quem dirá de poesia’

São Paulo – No dia 10 de dezembro de 1988, Sérgio Vaz publicava seu primeiro livro, Subindo a Ladeira Mora a Noite, de forma independente. Otimista, achava que sua obra era aquilo que o mundo precisava. Por outro lado, demorou para conseguir vender seu primeiro exemplar. “Ninguém comprou de imediato. A primeira pessoa que comprou ainda disse: ‘Vou comprar para te ajudar, hein?’”, conta. Agora, 30 anos e sete livros depois, o poeta é referência com seu estilo único.

Nascido na cidade de Ladainha, interior de Minas Gerais, Vaz mora há anos em Taboão da Serra, na Grande São Paulo. Pelas ruas da periferia, viu a fome e o racismo, e precisou gritar em suas obras sobre isso. “De onde eu venho, nem todos completam 30 anos de idade. Quem dirá de poesia”, afirma. Neste dia 10, após extensa carreira, o poeta será homenageado na Assembleia Legislativa de São Paulo com o prêmio Santo Dias de Direitos Humanos. Mais um dos vários reconhecimentos de sua obra. Especial como cada um.

“Não sei se é coincidência ou um ciclo. Recebo o reconhecimento do Estado pelo meu trabalho justamente agora”, completa. Além de tal honraria, no dia seguinte, o Sarau Cooperifa também celebra os 30 anos do poeta. Vaz foi o fundador de um evento que acontece nas noites de quarta-feira há 14 anos no Jardim São Luiz, zona Sul de São Paulo. “O sarau vai acontecer normalmente, o último do ano. Acho só que vamos tomar um pouco mais de cerveja”, comenta aos risos.

A fala do poeta é leve e bem-humorada, ele diz ser feliz e vê o futuro com otimismo. “Vejo um cenário melhor hoje do que encontrei há 30 anos, com muitos jovens se apropriando das palavras como um dia eu sonhei. Vejo um bom futuro. Minha poesia também vejo com bons olhos e espero falar muito sobre literatura. Estamos na luta, não temos outro jeito”, relata. “Vejo com bons olhos as pessoas ampliando suas vozes. Voz sempre tivemos, agora ampliamos. Essa juventude que carrega o bastão me deixa muito feliz”, completa.

Ampliar vozes e democratizar a arte são pontos centrais da obra de Vaz. “Para nós, conseguir tirar do pedestal do sagrado a literatura é o grande mérito. Sempre foi um privilégio, agora temos de forma democrática. Tem a ver com memória. Resistência é memória. Estamos registrando as histórias de luta e de amor na periferia, essas memórias são contadas por quem viveu e vive. De uma certa forma, cortamos os atravessadores. Queremos contar nossas próprias histórias do nosso próprio jeito. É a hora do leão contar como foi a caça”, diz.

Grito de independência

O poeta relembra que quando lançou seu primeiro livro, a situação de seu bairro era absolutamente precária. “As ruas da região não tinham nem asfalto. Só para entender o cenário da poesia daquela época, era um lugar sem poesia. Um lugar de violência. Era muito difícil. Eu era um leitor que não tinha com quem conversar sobre livros.”

“O momento que vivemos na periferia é e sempre foi o de resistência e luta. Apesar de também falarmos de amor, temos a luta. É o reflexo do nosso tempo”

Agora, Vaz afirma que a arte da periferia vive sua “bossa-nova”. “Hoje, um monte de saraus, slams, coletivos, literatura periférica, negra, feminina, dominaram a cena. Poderia ser melhor, mas é muito melhor do que era.”

E é justamente nas dificuldades que a população que mora nas periferias encontra sua voz e sua arte. “O contexto político favorece o escritor engajado. A literatura periférica não é arte pela arte, tem um sentido, até porque o escritor, o artista, acaba produzindo a arte através do momento que ele vive, daquilo que ele vê. O momento que vivemos na periferia é e sempre foi o de resistência e luta. Apesar de também falarmos de amor, temos a luta. É o reflexo do nosso tempo”, afirma.

Vaz lembra como foi o início do caminho que levou ao atual cenário. “Esse novo momento da periferia vem muito a reboque do hip hop, do rap. Foi o grito de independência da periferia. ‘Sou negro, e daí? Sou pobre, e daí? Sou da favela, e daí?’. A partir do momento em que a poesia se encontra dentro do contexto do hip hop, as pessoas começam a ter coragem de escrever seu relato do que acontece na periferia”, afirma.

Do barro para o mundo

O poeta, ao contar sua história, lembra do momento mais difícil. Foi justamente o início. “Naquele lugar éramos proibidos de sonhar. Fiquei pensando sobre quem leria meu livro já que ninguém lê. Então, comecei a andar pela comunidade para falar sobre poesia, sobre literatura. Comecei a pensar em projetos para incentivar a literatura.”

Esse processo teve relação com suas expectativas, comenta. “Minha maior dificuldade foi mudar meu olhar, descer do pedestal. Às vezes, quando lemos muito, achamos que somos melhores do que os outros. Então, foi preciso ter humildade e entender que eu não era a última bolacha do pacote.”

A grande parte da sua produção foi e é independente. “Minha livraria é minha mochila”, afirma. Essa forma alternativa de democratizar a literatura e trabalhar com arte acaba por fazer com que Vaz passe relativamente longe da atual crise das editoras, puxada pela decadência do modelo predatório das grandes livrarias.

“A crise é ampla, mas o Sarau Cooperifa, neste ano, já lançou mais de 30 livros. Toda semana tem autor lançando aqui e depois em outros saraus e slams. Aprendemos a editar nossos livros e também consumir. Não tenho solução para a crise do mercado, mas o autor independente vai viver como sempre viveu.”

A relação com o mercado sempre foi um problema, mesmo para o poeta amplamente reconhecido hoje. “Tem uma livraria aqui em Taboão que demorei cinco meses para colocar meu último livro lá. Eles nunca olharam para as pessoas da periferia como se pudessem ou tivessem vontade de ler”, aponta. “Você vê um cara com 30 anos de poesia que tem que implorar para deixar cinco livros na livraria da região dele. Eu ainda me ofereci para fazer o lançamento, um sarau. Tentei levar público, porque achei o máximo ter uma livraria perto, mas ninguém se importou.”

Obrigado, poeta

Em outro relato de uma relação difícil com o mercado, o poeta conta que tentou realizar um sarau em uma grande livraria no Rio de Janeiro. “Quis lançar minhas camisetas poéticas lá. Não aceitaram. Queriam participação na venda das camisetas. Olha só, eu ia pagar passagem, levar o público e ainda ter que dar dinheiro.”

De frente com esses desafios de ontem e hoje, Vaz prefere recordar de suas alegrias. Conta sobre dois momentos aparentemente antagônicos que marcaram sua vida. “Em um deles, fui ao mercado e um menino de 13 anos, que distribuía panfletos de uma ótica, abriu um sorriso ao me ver. Brinquei com minha mulher que ele já tinha aprendido a ser vendedor, sorriu para que eu pegasse o panfleto. Quando peguei, ele me disse: ‘Obrigado, poeta’. Perguntei se ele me conhecia e ele disse que sim, que eu tinha ido na escola dele.”

Vaz conta que ficou emocionado com o momento. “É uma coisa maravilhosa um menino de 13 anos que está entregando panfleto te reconhecer como poeta. Para mim, que escrevo com e para a periferia, foi um momento maravilhoso.”

O outro momento também fala sobre o alcance de sua extensa obra. “Poxa, um dia dei uma palestra em uma universidade na Alemanha. São dois momentos marcantes. Neste, fiquei emocionado em me ver em uma universidade falando para aqueles estudantes. Pensei que mal sabia ler e estava falando para aquele povo”, conta.

Por fim, por cima das dificuldades e passando pelas alegrias, o poeta reforça seu otimismo e relata que o sonho é possível.