Entre Vistas

Para especialista, atuação da polícia no Rio representa ‘banho de sangue’ na população

Antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares falou ao jornalista Juca Kfouri, na TVT, sobre os desafios para combater a violência da polícia militar no Rio

Fernando Frazão/ABr
Fernando Frazão/ABr
Policiais e população: herança dos valores da ditadura civil-militar agrava o problema da violência policial

São Paulo – A atuação violenta da Polícia Militar no Rio de Janeiro representa um verdadeiro banho de sangue sobre a população, com a cumplicidade do Ministério Público no estado. A avaliação é do antropólogo e cientista político Luiz Eduardo Soares, um dos mais importantes especialistas em segurança pública do Brasil. Ele foi o entrevistado do jornalista Juca Kfouri na edição de quinta-feira (21) do Entre Vistas, na TVT.

Soares lembrou que de 2003 a 2021 foram oficialmente registradas 19.464 mortes provocadas por ações policiais na capital fluminense – mais de mil por ano. “Elas já são mais ou menos um quarto dos homicídios da capital e um terço do estado, de modo que se a polícia parar de matar nós impomos imediatamente uma redução dos homicídios”, afirmou.

“E quantos casos foram às barras dos tribunais não se sabe, o que é gravíssimo. Mas as pesquisas realizadas em vários períodos nessas duas décadas mostram que nem 1,5%. Portanto, o Ministério Público tem sido cúmplice por omissão, por inércia, desse banho de sangue”, destacou.

Uma ação conjunta da Polícia Militar junto à Civil no Rio de Janeiro resultou em 20 mortos durante incursão no Complexo do Alemão, conjunto de favelas da zona norte da cidade. Entre os assassinados estão uma mulher, um policial e 16 homens classificados pela PM como “suspeitos”.

Caramante
Soares: “O que formou esse enclave tem por característica fundamental o fato de ser um poder refratário à autoridade civil” / Arquivo Pessoal

Condições de trabalho dos policiais

Um dos pontos iniciais para combater a violência das abordagens policiais é reconhecer que os policiais são trabalhadores que merecem tratamento respeitável e digno, nas suas respectivas instituições, considera Soares. “A situação de exploração a que se submete a força de trabalho policial é uma coisa de fato assombrosa, e muito pouco conhecida. Até porque os militares não podem se pronunciar. Não faz muito tempo, uma promotora aqui do Rio de Janeiro, muito corajosa, resolveu ir a campo para ouvir melhor as denúncias que eram provenientes de policiais”, afirmou o especialista.

Segundo Soares, essa apuração visitou as UPPs e encontrou policiais trabalhando em situação análoga à da escravidão. “Sem alimentação, sem condições higiênicas e de infraestrutura sanitária. Eles faziam as necessidades no mato, ficavam naqueles contêineres, com aparelho de ar refrigerado quebrado. Sem treinamento, orientação, e em jornadas de trabalho inclusive que ultrapassavam aquelas previstas para casos excepcionais”, disse.

Soares conta que mesmo estando os policiais “submetidos a tamanha ilegalidade, no entanto não podiam se pronunciar, porque isso lhes valeria inclusive prisão administrativa e não progrediriam na carreira”.

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Para ele, o diálogo em torno das condições de trabalho na polícia, seja no Rio ou em qualquer outro estado do país, não será um processo fácil. “Porque o que predominou durante todas essas décadas foi uma cultura que é oriunda dos porões da ditadura. Porque não tivemos justiça de transição, não tivemos nem sequer transição. Como é também o caso das Forças Armadas, houve um ‘congelamento’ das instituições, de suas práticas, e seus valores.”

Um dos problemas, para Soares, “é que os policiais eram bolsonaristas antes de Bolsonaro e o são independentemente de Bolsonaro”. A preservação da filosofia da ditadura civil-militar na segurança pública representa o que o estudioso chama de “enclave institucional”, uma bolha que mantém as polícias da forma como foram forjadas na ditadura, assim como suas práticas.

“O que formou esse enclave tem por característica fundamental o fato de ser um poder refratário à autoridade civil, à autoridade política. E aí podemos conectar até com a questão militar. Eles não admitem a autoridade política civil e, portanto, eles não estão apenas traindo a Constituição, quando perpetram execuções extrajudiciais.”

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