Insegurança máxima

Chacina da Vila Cruzeiro chega a 23 mortes com denúncias de execuções a facadas

Especialista em segurança lamenta o resultado da operação policial e diz que só as chefias do crime, os policiais corruptos, as coberturas do Rio de Janeiro e os palácios de governo estão comemorando

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"Cancelar CPF, respondendo ao presidente Jair Bolsonaro, não cancela a economia política do crime”, garante a especialista em segurança pública

São Paulo – A Polícia Civil informou que o número oficial de mortos na operação policial da última terça-feira (26) na Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro, é de 23 e não 26, até o momento. A informação inicial, de 26 óbitos, havia sido atualizada na madrugada desta quinta (26) após a morte de um paciente que estava internado no Hospital Estadual Getúlio Vargas. Mas o Instituto Médico Legal (IML) explicou que três dos mortos, que foram atribuídos à operação na Vila Cruzeiro, na verdade eram de um suposto confronto entre facções rivais no Morro do Juramento.

A unidade de saúde afirma ter recebido, ao todo, 28 vítimas da operação deflagrada há dois dias por agentes do Batalhão de Operações Especiais (Bope), da Polícia Rodoviária Federal (PRF) e da Polícia Federal (PF). Segundo a direção do Getúlio Vargas, 21 chegaram mortos. Outros três pacientes seguem internados, dois deles com quadro estável e um em estado grave. Há ainda outros dois feridos. Um deles foi identificado como Edson Ferreira da Costa, ele foi transferido para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Complexo de Gericinó. O segundo é Ryan de Almeida que está no Hospital Municipal Salgado Filho.

Na manhã de quarta (25), representantes da Ordem dos Advogados do Brasil seção Rio de Janeiro (OAB-RJ) e da Defensoria Pública do Rio estiveram na região conhecida como Terra Prometida, que fica na parte alta da comunidade, onde se concentrou a operação policial. Ao colher relatos dos moradores e flagrar um cenário de guerra com rastros de sangue e balas, os representantes também indicaram a suspeita de tortura e execução durante a ação.

Facadas e tortura

A região, de acordo com reportagem da Folha de S. Paulo, é marcada pela vulnerabilidade social e as casas são todas feitas de madeira. Em uma delas, a moradora contou que dormia com o marido e a filha pequena quando, por volta das 3h30, a casa começou a ser metralhada por policiais militares. “A gente se jogou da cama para o chão e começou a gritar, dizendo que na casa tinha morador, que a gente era trabalhador. Mas eles disseram: ‘morador é o caralho’ e continuaram atirando”, disse a mulher.

Segundo a moradora, que está na região há três anos e nunca tinha visto algo parecido, quatro PMs invadiram sua casa. Eles diziam a “Orelha”, um dos homens de farda, que havia pessoas escondidas nos fundos da casa de dois cômodos. “Eles foram para lá e mataram o cara a facadas”, denunciou. Outra moradora contou estar traumatizada e que pretende mudar de local por conta da violência. Seu imóvel, de acordo com ela, também foi invadido por policiais.

“Existem indícios de execuções, em algumas regiões. Indícios de que pelo menos uma pessoa foi torturada antes de ser morta, ontem. E existem indícios de mortos a facadas. Então, a gente está aguardando o desenrolar da perícia do IML para ver em que condições essas pessoas foram mortas”, afirmou o procurador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, Rodrigo Mondego, em entrevista ao G1

Projeto eleitoral

A operação policial desta terça que entrou para a história como a segunda mais letal do Rio. Atrás apenas do massacre no Jacarezinho, em maio de 2021, que deixou 28 pessoas mortas. As duas operações ocorreram sob o governo de Cláudio Castro (PL). Em apenas um ano de gestão, o governador já acumula 39 chacinas policiais e 178 mortes, segundo estudo do Instituto Fogo Cruzado e do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (Geni-UFF). 

Esse números, de acordo com a especialista em segurança pública Jacqueline Muniz, são resultados “de um governo que não governa”.

“No caso do Rio de Janeiro fica muito evidente que se tem vários governos autônomos. Tem o governo do Castro, tem o governo policial, o governo miliciano e os governos do tráfico. O senhor governador não governa as polícias, ele aceitou e deliberou para o mundo do pode tudo. ’A minha polícia faz qualquer coisa e eu sigo por aqui’. (…) Isso sabota a própria possibilidade de prestação de serviços policiais de qualidade. Se trata de produzir um projeto que é a maximização da insegurança. Tem que lembrar que isso tem rendimento eleitoral.” 

A crítica foi feita em entrevista a Marilu Cabañas, no Jornal Brasil Atual. Cientista política, antropóloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jacqueline Muniz analisou mais essa operação policial que virou chacina na Vila Cruzeiro como uma “reestreia do pior. Uma rebobinagem da tragédia anunciada”.

Mortes provam incompetência

Para Jacqueline, esse tipo de operação é feita não para produzir controle sobre território e população. Mas justamente para produzir “justiça de espetáculo” pela elevada rentabilidade político-eleitoral que isso pode produzir nas urnas. Segundo ela, as mortes em uma ação produzem um “teatro de larga escala” para o cidadão que está com medo e se sente desamparado na esquina. “É a dimensão mais visível”, aponta. Mas a solução imediata não existe para os problemas de segurança pública, conforme ela ressalta.

Foram mais de 12 horas de tiroteio por conta da operação que, segundo a PM, visava prender chefes do Comando Vermelho e suspeitos vindos de outros estados que estariam escondidos na comunidade. O comando da corporação disse ainda que a operação estava sendo planejada havia meses, mas foi deflagrada de modo emergencial para impedir uma suposta migração para a Rocinha. Uma das vítimas, a manicure Gabrielle Ferreira da Cunha, foi atingida dentro de casa, na favela da Chatuba, vizinha à Vila Cruzeiro. Entre os mortos identificados, a polícia alega que a maioria era suspeito. Jacqueline Muniz crítica o argumento e diz que “matar gente, criminoso e suspeito é a demonstração cabal da incompetência”.

Quem comemora?

A avaliação da especialista é que todos os suspeitos deveriam ser presos para a produção de investigação e inteligência sobre o funcionamento do mundo do crime. Do contrário, a polícia está queimando arquivos e produzindo mais grupos criminais. Jacqueline conclui que só comemora o resultado da operação na Vila Cruzeiro quem está lucrando com essa política de extermínio. “Essa lambança que a gente assiste tem relação com essa autonomização (predatória das polícias), em que todo mundo bate palma. Só que cancelar CPF, respondendo ao presidente Jair Bolsonaro, não cancela a economia política do crime”, garante.

“O dinheiro do crime vai para dentro das carreiras políticas que são as melhores lavanderias. Quando se tem matança, é porque se tem uma rede de corrupção por trás. E hoje está todo mundo comemorando ali nas coberturas do Rio de Janeiro, nos palácios. Quer brincar sério de enfrentar o crime organizado, começa a visitar os palácios de governo, as câmaras legislativas, porque o mercado ilegal segue de vento em poupa”, defende a professora. 

“As chefias do crime, que não estão nas favelas, estão comemorando o resultado dessa operação, porque quem ganhou foram os policiais corruptos. Subiu o preço da propina, o preço do alvará da drogaria ilegal que funciona das bocas de fumo. (….) Temos que cobrar das nossas lideranças políticas que tenham coragem de colocar o problema no lugar certo, esse é um problema político, de governabilidade e de controle”, finaliza Jacqueline Muniz. 

Redação: Clara Assunção – Edição: Helder Lima