Memória da Copa

Há 80 anos, Itália era campeã do mundo pela primeira vez

Final disputada contra a Tchecoslováquia teve arbitragem duvidosa, coroando um torneio que conviveu com a sombra do fascismo

Arquivo EFE

O técnico Vittorio Pozzo é levantado pelos jogadores após decisão: esquema militar e isolamento

Era um dia 10 de junho quando a Itália e a extinta Tchecoslováquia entraram em campo no estádio Nazionale PNF (sigla do Partido Nacional Fascista), em Roma, para decidir quem seria o campeão da segunda edição da Copa do Mundo de futebol, em 1934. Da tribuna de honra, o ditador Benito Mussolini era saudado pelos jogadores da Alemanha, terceira colocada na competição, que entraram junto com as equipes finalistas, exibindo a bandeira do país com a suástica. O árbitro sueco Ivan Eklind e os auxiliares Louis Baert e Mihaly Ivancsics também fizeram a saudação fascista ao líder italiano ao entrar em campo. Aquele não era um torneio comum.

Em 1929, a Itália organizou o primeiro campeonato nacional e a modalidade ultrapassava o ciclismo em popularidade, tornando-se o esporte preferido no país. No mesmo ano, Mussolini manifestara a intenção de sediar a Copa do Mundo, pretensão que se tornou realidade em 1932, quando a Suécia, candidata até então, desistiu da disputa. A competição serviria para mostrar ao mundo a força das ideias que fundamentavam o fascismo, tornando-se um meio de propaganda política que só seria válido se os italianos ficassem com o título.

A tarefa estava facilitada, já que o Uruguai, incomodado com o boicote que a primeira edição da Copa sofrera por parte dos europeus – apenas quatro seleções do continente participaram, sendo todas de nível técnico inferior à época – se recusou a ir, tornando-se a primeira e única seleção campeã que não defendeu o título. Os ingleses também não disputaram, já que entendiam ser os melhores do mundo, não sendo o torneio algo que, de fato, definisse a melhor equipe. No total, 32 times se inscreveram para as eliminatórias, com 16 vagas em disputa.

Trajetória complicada

De acordo com o livro O Mundo das Copas (Lua de Papel), de Lycio Vellozo Ribas, a preparação da seleção da Itália para o Mundial envolveu o isolamento de comissão técnica e jogadores no Lago Maggiore, na Toscana, por um período de dois meses. Os atletas viveram uma rotina quase militar sob o comando do técnico e jornalista Vittorio Pozzo até a estreia, contra os Estados Unidos. O resultado da partida foi a maior goleada daquela competição, 7 a 1 sobre os norte-americanos.

Os jogos eram eliminatórios, disputados em partida única ou, em caso de igualdade, uma partida-desempate seria jogada, já que não havia disputa de pênaltis. Foi o que ocorreu no duelo entre italianos e espanhóis, que acabou em 1 a 1. Na peleja seguinte, vitória da Azzurra por 1 a 0. A arbitragem foi contestada em ambos os jogos.

O árbitro Louis Barert não viu (ou não quis ver), no primeiro duelo, que o gol dos donos da casa só surgiu após uma cotovelada de Schiavo no goleiro Zamora, com a bola sobrando limpa para Ferrari marcar. O arqueiro, aliás, não disputou o jogo-desempate, que teve dois gols legítimos da Espanha anulados pelo árbitro suíço René Mercet. Os anfitriões chegavam à semifinal contra a Áustria.

Quatro meses antes da Copa, os austríacos haviam derrotado os italianos em um amistoso jogado em Turim, por 4 a 2. Desta vez, a vitória foi da Itália, por 1 a 0 e, novamente, com arbitragem polêmica. No lance que deu origem ao gol italiano, o atacante Guaita trombou com o goleiro Platzer, caracterizando falta. Vista grossa do árbitro sueco Ivan Eklid, que nada marcou.

Curiosamente (ou não) o homem da arbitragem da semifinal foi o mesmo da final, jogada entre Itália e Tchecoslováquia, que havia eliminado a Alemanha na semi. Aos 31 minutos da etapa final, o atacante tcheco Puc recebeu de Sobotka e marcou. Os italianos empataram cinco minutos depois, com Orsi. Ferrari, que deu a assistência no lance, teria dominado a bola com o braço, mas o árbitro, depois de consultar o auxiliar, validou o tento. Na prorrogação, Schiavo fez o da virada aos 5 e não houve possibilidade de reação tcheca, com os donos da casa se fechando na defesa. Assim, há 80 anos, a Itália se tornava o segundo país a erguer uma taça do mundo.

E o Brasil?

Como em 1930, a seleção não mandou o que tinha de melhor para a Copa. A união entre a Liga Carioca de Futebol (LCF) e a Associação Paulista de Esportes Atléticos (Apea) havia formado a Federação Brasileira de Futebol, que lutava pela profissionalização deste esporte. Do outro lado, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), responsável pela seleção, permanecia fiel à ideia do amadorismo.

O resultado da briga entre as associações, conforme O Mundo das Copas, é que a maioria dos clubes do eixo Rio-São Paulo impediu que os atletas servissem à seleção, permanecendo apenas o Botafogo fiel à CBD, que teve 8 dos 17 convocados da equipe. Carlito Rocha, dirigente do clube, ficou com a missão de montar o time e passou a oferecer dinheiro aos jogadores dos clubes filiados à FBF para atuarem no Mundial. O único clube paulista que cedeu à tentação financeira foi o São Paulo da Floresta, que liberou quatro atletas.

A seleção não precisou jogar as eliminatórias, já que o Peru desistiu de participar. Com uma equipe enfraquecida e desgastada pela longa viagem de navio, o Brasil saiu na primeira fase após ser derrotado pela Espanha por 3 a 1, com três gols feitos ainda na primeira meia hora de partida. Valdemar de Brito perdeu um pênalti pela seleção quando a partida estava com o placar definitivo, sendo o primeiro atleta do país a perder uma penalidade em Copas. Em compensação, tem no currículo o fato de ter sido o descobridor de um tal Gasolina, que mais tarde se chamaria Pelé…