Fake news e luta de classes

Boaventura de Sousa Santos: derrota da nova Constituição no Chile é alerta para democratas de todo mundo

Sociólogo português associa campanha no Chile e atentado na Argentina a movimentação de setores da elites incomodados com avanços da democracia e do enfrentamento às desigualdades

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Boaventura: Seria de esperar que embate entre uma Constituição progressista e outra retrógrada houvesse polêmicas. Mas vitória do "rechazo" foi resultado da manipulação em massa que assola o mundo

São Paulo – O processo eleitoral que levou à rejeição da nova Constituição do Chile é exemplo extremo de manipulação da opinião pública para induzir seu voto. A avaliação é do jurista e sociólogo Boaventura de Sousa Santos, em artigo no site A Terra é Plana. Em seu texto, o professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra faz um alerta. Os instrumentos mobilizados para “intoxicar a opinião pública” chilena com falsidades merecem atenção dos democratas do mundo todo. “E muito especialmente dos latino-americanos”, ressalta, Boaventura.

Conhecedor na geopolítica global, o intelectual português compara a derrota no Chile a processos eleitorais recentes, afetados por mentiras estrategicamente espalhadas pelas redes sociais.

  • A campanha do Brexit na Inglaterra (2016)
  • O referendo dos acordos de paz na Colômbia (2016)
  • As campanhas eleitorais de Donald Trump nos EUA (2016 e 2020) e de Jair Bolsonaro no Brasil (2018)
  • A preparação do golpe contra Evo Morales na Bolívia (2019)
  • A tentativa de impedir Pedro Castillo de assumir a presidência no Peru (2021).

Nesse sentido, Boaventura cita pelo menos três características marcantes da vitória do “rechazo” no Chile.

1 – Ação de forças conservadoras internacionais

Com alguma antecedência, essas forças fabricam razões que justificam a rejeição do candidato ou da medida política. Por exemplo, o acordo de paz na Colômbia ou a nova Constituição do Chile.

Criam uma aura de respeitabilidade à posição que defendem. Por exemplo, ao longo do último ano a revista The Economist recomendou fortemente a rejeição da nova Constituição.

2 – A manipulação da opinião pública

Desse modo, se produz um sentimento de medo que aumente a insegurança do eleitor e da sua família. “No Chile, um ativista de direita arrependido denunciou um conjunto enorme de redes de WhatsApp que diariamente combinava fazer um trending (criação de tendência) específico contra alguém ou alguma medida. O teor concreto das mensagens falsas varia de país para país”, registra o autor. Eis algumas selecionadas de uma “imensa cloaca de lixo informacional”, no caso do Chile:

  • Se votas sim, convertes-te num cidadão de segunda classe;
  • O nome do teu país mudará e a bandeira também;
  • Vão dividir o país em vários;
  • Não haverá polícia para te proteger dos imigrantes e indígenas que tomarão poder;
  • As mulheres poderão abortar horas antes de parir;
  • Elas não poderão ir ao parque passear por terem medo dos imigrantes que as podem violar;
  • Não se poderá comprar água engarrafada nem gelo;
  • Não haverá educação privada nem saúde privada;
  • Não haverá propriedade privada em geral;
  • Vão-nos tomar as nossas casas e as nossas terras; proibirão a religião;
  • Tens de votar não à Constituição, mas mesmo assim estão tentando a fraude eleitoral;
  • Vão trazer venezuelanos e haitianos para votar sim;
  • Se isso não bastar, vão fazer com que mortos e desaparecidos votem; isso mesmo está no recenseamento eleitoral.

3 – Estrutura internacional por trás da desinformação

No caso do Chile foi intensa a intervenção de uma vasta rede de organizações, fundações, institutos, think tanks, envolvendo políticos, influencers e jornalistas de direita e de extrema direita, todos pertencentes ao Atlas Network.

O Atlas Network é uma vasta organização originalmente financiada pelos irmãos Koch nos EUA, industriais do petróleo bem conhecidos pela sua ideologia de extrema direita. Segundo a sua própria descrição, é uma organização não-governamental baseada nos EUA que fornece treino, contatos, redes e financiamento para grupos libertários e partidários do livre mercado em todo o mundo.

Existem 500 organizações parceiras em quase 100 países. Os seus quadros são treinados nos EUA e a ideologia é muito homogénea e corresponde por inteiro à da escola de Chicago a quem o ditador Pinochet entregou a condução econômica do país em 1973 (o neoliberalismo extremo com o desmantelamento do Estado social, a privatização das políticas públicas, a minimização dos impostos, o mercado livre como regulador das relações económicas e sociais).

O Atlas Network atua como intermediário entre quem tem dinheiro e quem tem talento para difundir as ideias que defendem. Está bem presente no Brasil e certamente estará bem ativo no atual processo eleitoral.

Tanto assassinatos de ativistas e líderes políticos quanto a manipulação da opinião pública exigem hoje um vasto ecossistema digital. “Esse sistema transforme adversários políticos em inimigos, como meio de ocultar os verdadeiros opressores”, assinala Boaventura. Ele descreve a tática:

Alimentar o discurso do ódio, incitar instintos de vingança e criar indiferença perante a injustiça social. Se isso persistir, a longo prazo, transformará cidadãos em súbditos e destruirá a democracia.

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Brasileiro apontou pistola a centímetros de líder argentina

Em sua análise, Boaventura de Sousa Santos inclui a situação da Argentina. E observa: “Sempre que a democracia entra no imaginário popular como instrumento de luta contra a injustiça social torna-se um alvo das forças antidemocráticas”. Ele cita o amplo leque de forças internacionais, que incluem novos movimentos fascistas e neonazis, setores capitalistas e as elites mais retrógradas dos países.

Para Boaventura, atentado contar Cristina Kirchner no último dia primeiro, como a derrota da nova Consituição no Chile, ilustram dois dos quatro principais instrumentos a que as forças antidemocráticas recorrerão nos próximos tempos para neutralizar o movimento democrático que vai irrompendo das classes populares contra a injustiça e a discriminação social, tanto na América Latina como no resto do mundo. Os dois outros instrumentos são: por um lado, a neutralização político-judicial de líderes políticos ou de medidas políticas através do que se convencionou chamar lawfare, guerra jurídica; por outro lado, a fraude eleitoral.

O sociólogo afirma que esses quatro instrumentos merecem atenção detalhada, porque não se trata de instrumentos separados por alguma divergência ideológica entre as forças antidemocráticas. “Qualquer destes instrumentos pode ser usado pelas mesmas forças e a decisão da sua utilização depende apenas do cálculo da sua eficácia”, diz Boaventura. “As forças democráticas devem estar preparadas para estes quatro tipos de ataques.”

Leia íntegra do artigo de Boaventura de Sousa Santos em A Terra é Redonda