Berço das águas

Cerrado pede socorro. Fontes que servem comunidades têm resíduos de até nove agrotóxicos

Dado é de uma pesquisa envolvendo a Fiocruz, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, entre outras entidades, em sete estados do país que compõem o bioma

Thomas Bauer/CPT/H3000
Thomas Bauer/CPT/H3000
Cada vez mais espremido pelo agronegócio, o Cerrado tem nascentes e cursos d'água totalmente contaminados

São Paulo – Considerado o berço das águas no Brasil, o Cerrado está contaminado pelos agrotóxicos presentes em nascentes, rios, lagoas, açudes, represas, cacimbas e até em poços residenciais. Na região onde nascem os rios importantes como o Paraguai, Paraná, São Francisco, Parnaíba,Tocantins, Araguaia, Tapajós e Xingu, entre outros, as comunidades estão bebendo águas poluídas por diversos ingredientes ativos altamente tóxicos despejados sobre os latifúndios de commodities.

A gravidade da situação é tamanha que, dependendo da localidade, é possível encontrar na água de abatecimento um mix de até nove ingredientes ativos. Não bastasse a variedade, amostras demonstram também que se tratam de substâncias altamente tóxicas, em altíssimas concentrações.

Estas são algumas das conclusões de uma série de testes de qualidade da água coletada em sete diferentes regiões do bioma Cerrado. Ou seja, em localidades nos estados do Tocantins, Goiás, Maranhão, Piauí, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso e Bahia, em zonas de transição ecológica com a Amazônia e o Pantanal. O trabalho conjunto envolvendo a Fiocruz, Comissão Pastoral da Terra (CPT) e Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, entre outras entidades, culminou com o relatório Vivendo em territórios contaminados: Um dossiê sobre agrotóxicos nas águas do Cerrado, lançado esta semana.

Fruto de uma “pesquisa-ação” implementada entre 2021 e 2022, análises toxicológicas e ambientais, o relatório mostra dados no mínimo preocupantes. Na comunidade quilombola Cocalinho, em Parnarama, Maranhão, uma única amostra continha resíduos de Atrazina, Ciproconazol, Difenoconazol, Epoxiconazol, Glifosato, Metolacloro, Picoxistrobina, Piraclostrobina e Trifloxistrobina. Ou seja, nove dos 13 ingredientes ativos encontrados no conjunto das amostras. Entre eles, a Atrazina, Ciproconazol, Epoxiconazol e o Picoxistrobina estão banidos na União Europeia por desencadearem diversos tipos de câncer, malformações fetais e diversas alterações no organismo.

A gente precisa do Cerrado vivo, diz vítima dos agrotóxicos

Na comunidade vivem 170 famílias, cujos antepassados chegaram à região entre o final do século 18 e começo do século 19. Antes de se fixarem ali, percorreram diversos pontos em busca de cursos d’água que ainda estivessem fora dos domínios dos coroneis da época. A cultura praticada ali em pequenas roças é variada: milho, arroz, mandioca, cana-de-açúcar, feijão, maxixe, quiabo, abóbora, melancia, melão, fava, chuchu, pimenta-malagueta, cebolinha, coentro, alface, couve, inhame e batata doce.

Entre elas está a da agricultora Raimunda Nepomuceno. Nesta quinta-feira (1º), em debate na Câmara, ela relatou a grave situação de quem convive com a pulverização de venenos. “Quando falamos dos venenos, falamos de algo muito perigoso que está destruindo as nossas vidas, a natureza. As pessoas sofrem muito, com câncer, doenças de pele. Tomar água com agrotóxicos todo dia, se alimentar de alimento contaminado. É muito difícil pra nossa gente. A gente precisa de ajuda para sobreviver. Com agrotóxicos não temos território, não temos água. A gente precisa do nosso Cerrado vivo. E para isso precisamos proteger”, disse Raimunda, em um apelo.

Um dos cursos de água poluída por agrotóxicos que servem a comunidade Cocalinho. Foto: CPT

O racismo ambiental a que estão as comunidades de Cocalinho e outras inseridas na pesquisa foi alvo de da petição da Campanha Nacional do Cerrado ao Tribunal Permanente dos Povos, em novembro de 2019. No ano passado, o Estado brasileiro foi condenado pelo ecocídio do Cerrado e o genocídio de 15 povos tradicionais e originários do bioma. Foram condenados também governos estaduais, organizações multilaterais e governos internacionais, empresas brasileiras e multinacionais. Inclusive fundos de investimento envolvidos na destruição ambiental e das condições de vida das comudades.

Outros agrotóxicos encontrados nas amostras de água

  • Glifosato – detectado em todos as amostras. A substância foi proibida pela Autoridade Europeia para Segurança dos Alimentos (EFSA) devido à ausência de evidências suficientes para estabelecer limites de segurança para exposição crônica, mas segue autorizada no Brasil.
  • Metolacloro – além de ser proibido na União Europeia, é suspeito de ser desregulador endócrino e sua exposição está associada ao aumento da incidência de tumores, em particular hepáticos. Além disso é considerado perigoso para o meio ambiente.
  • Fipronil – tem como alvos primários o sistema nervoso, a tireoide e o fígado. Foi classificado pela USEPA como um possível carcinógeno humano, devido à ocorrência de tumores na tireoide. Esse ingrediente ativo também está associado a milhares de casos de intoxicação, inclusive graves.
  • Atrazina – o terceiro agrotóxico mais detectado nas análises, presente em todos os estados em ao menos um ciclo de coleta de amostras, exceto no Mato Grosso. No Maranhão, os níveis de atrazina detectados na comunidade de Cocalinho foram mais de 2 vezes superiores ao valor máximo permitido segundo as normativas brasileiras. Dos oito agrotóxicos identificados e quantificados, quatro estão entre os 10 mais comercializados no Brasil em 2021. O glifosato está na primeira posição. O segundo é o 2,4-D, seguido pela atrazina e o metolacloro, na décima posição.

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