Gestão genocida

Em ‘Desaparecidos da covid-19’, cientistas denunciam o descaso de Bolsonaro pela pandemia

Obra é organizada por pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e apresenta uma visão multidisciplinar sobre a tragédia da covid-19 no Brasil

Alex Pazuello/Semcom
Alex Pazuello/Semcom
O livro traz com detalhes evidências da subnotificação no Brasil, que tem estimados mais de 200 mil mortos por covid-19

São Paulo – Cientistas de notória atuação em estudos sobre a Amazônia assinam o sexto volume da série “Quarentenas Amazônicas”. Com o título de “Os Desaparecidos da covid-19”, o e-book (link abaixo) lança um olhar multidisciplinar sobre os seis primeiros meses da pandemia de covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus.

A obra é, sobretudo, um compilado científico. Entretanto, já nas primeiras páginas, o leitor percebe claro tom de denúncia, presente inclusive no próprio título. Os desaparecidos da covid-19 são os mortos pela doença que não entraram nas estatísticas, perdidos na carência de uma estrutura que leva à subnotificação.

O Brasil se aproxima de 150 mil mortos da covid-19. É o segundo país com mais vítimas no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, sendo que os norte-americanos testam muito mais do que o Brasil (menos de 9% da população). Mesmo assim, os dois países possuem similaridades que vão além da simples tragédia. Ambos possuem governos que ignoram a ciência, minimizam a covid-19 e atuam contra medidas de controle do vírus.

Evidências

O livro traz com detalhes evidências da subnotificação no Brasil, assim como relatado pela RBA na última semana. Uma análise do número muito acima da média de mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) neste ano leva à afirmação, com certa segurança, de que os mortos por covid-19 já passam de 200 mil no Brasil.

“Em Manaus, por exemplo, nos meses de abril e maio de 2020, comparado com o mesmo período de 2019, os óbitos totais mais do que dobraram e as mortes por SRAG aumentaram 70 vezes. Muitos desses óbitos por SRAG tiveram a covid-19 como causa, mas na ausência de uma adequada testagem, não receberam o devido diagnóstico”, afirma um trecho do livro dedicado às análises dos modelos matemáticos aplicados no monitoramento da pandemia.

Irresponsabilidades4

O livro traz uma “justificativa” para o uso do termo “desaparecidos”. A analogia vem a partir dos mortos pela ditadura civil-militar (1964-1985), assassinados pelo regime que tiveram negados até mesmo o direito de serem enterrados por suas famílias. Ditadura, defendida abertamente por Jair Bolsonaro.

“O presidente da República chamou repetidamente a covid-19 de ‘gripezinha’ e, quando confrontado com o número alto de mortes, disse frases como ‘Vamos todos morrer um dia’, ‘e daí?’ e ‘não sou coveiro’ (…) Talvez não nos surpreendamos ao lembrar, em paralelo, das frases que o então deputado federal proferiu sobre os desaparecidos do regime militar (…) O presidente Bolsonaro sublinhou que o erro do regime foi “torturar e não matar”.

Tragédia naturalizada

Além de posições matemáticas, estão presentes no livro discussões da ordem política, social, antropológica, de segurança no trabalho e outras. O prefácio é assinado pelo biólogo doutorando Lucas Ferrante, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam).

Ferrante tece duras críticas contra a postura de desprezo da Presidência diante da maior crise sanitária do mundo em mais de 100 anos. O cientista lembra que, por ordem de Bolsonaro, dados da covid-19 chegaram a ser ocultados e, desde maio, o Ministério da Saúde, fala apenas dos recuperados.

“No Brasil, a banalização no número de infectados é comemorada por cada atualização do número de recuperados. Esta comemoração ignora primeiro o número de sequelados pela doença, pessoas com sequelas cardíacas, pulmonares e cerebrais, além das pessoas não se lembrarem que, para pelo menos cem pessoas que se recuperaram, três vidas foram perdidas”, afirma.

Bolsonaro também não pode alegar que foi pego “de surpresa” pelo impacto da pandemia. O Brasil foi um dos últimos países do mundo a ser afetado, muito após crises graves na Itália e Espanha, por exemplo. “Mesmo a pandemia tendo chegado ao Brasil meses após seu descobrimento em Wuhan, na China, o governo brasileiro não havia se preparado para responder a esta crise sanitária. Como o próprio presidente anunciou em rede nacional, esta seria ‘apenas uma gripezinha'”, completa Ferrante.

Pandemia que segue

Mesmo após o grande impacto da covid-19 no Brasil, pouco ou nada foi feito. Na verdade, o que o país vê é a morte diária de centenas de pessoas de forma amplamente naturalizada. Trata-se de um “consentimento fatal”, nas palavras dos educadores da Universidade Federal da Amazônia (Ufam) Gerson André Ferreira e Noélio Costa, que assinam o posfácio da obra.

“Apesar de todos os alertas, no presente percebemos essa realidade como se fosse um consentimento fatal, normalíssimo, amparado em uma estratégia política de falseamento ou arranjo violento, como forma de garantir a sequência de um governo agnotológico (que produz ignorância). É uma violência consentida, nesses moldes por nós conceituados, porque está sendo banalizada e tomada como um fim em si, uma naturalidade per se“, completam.

O livro está disponível para download gratuito, em PDF, na plataforma Academia.