O destino do esporte

Seria papel do Estado subsidiar a formação de atletas como astros de espetáculos lucrativos? Ou propiciar saúde, força, beleza e plasticidade a toda a população?

Ilustração: Vicente Mendonça

A temporada Olimpíada leva a meditar sobre o destino do esporte na sociedade contemporânea. Digo isso inspirado pelo livro Euphoria and Exhaustion – Modern Sport in Soviet Culture and Society (Euforia e Exaustão – O Esporte Moderno na Cultura e na Sociedade Soviéticas), obra organizada pelos pesquisadores europeus Nikolaus Katzer, Sandra Budy, Alexandra Köhring e Manfred Zeller, ainda sem edição em português.

Os estudiosos, tanto sociólogos e antropólogos como jornalistas especializados, têm chamado a atenção nas últimas décadas sobre a cada vez mais intensa mercantilização do esporte. O interessante é que essa mercantilização não existia na antiga União Soviética, em que mesmo os esportistas altamente qualificados, que tinham o esporte como atividade central em sua vida, não podiam oficialmente dela ganhar a vida. Tinham de ter outro emprego.

Nas primeiras décadas do poder soviético, o entusiasmo pelo esporte era geral, tanto entre as autoridades como por parte da população. O ideal do “homem novo”, que seria criado pelo socialismo, exigia, entre outras coisas, corpos saudáveis e habilidosos, envolvendo “tanto a sociedade como um todo quanto o indivíduo, segundo normas científicas e estéticas”, como escreve Katzer. Segundo o livro, enquanto a massa da população via no esporte um meio de se desenvolver e de desenvolver a humanidade de cada um, as autoridades o viam não só como meio de promover a saúde pública, mas também o disciplinamento social.

Não se tratava, pelo menos como objetivo principal proclamado, de formar atletas de ponta que vencessem competições internacionais, mesmo porque a União Soviética, nas suas décadas iniciais, não participava regularmente de competições internacionais. Tratava-se de tornar esportista cada cidadão e cada cidadã. O público parecia imaginar que, praticando esportes, cada um atingiria um patamar mais alto de bem-estar físico e mental. As autoridades pareciam contar com as capacidades do esporte de propiciar mobilizações de massa e de disciplinar toda a coletividade numa rede de regras e de hierarquias, com a vantagem de que essa disciplina era livremente consentida.

Essa foi a fase da euforia, com a generalização do acesso da população a instalações e aos equipamentos adequados para cada esporte que quisesse praticar. Entretanto, na medida em que, no pós-Segunda Guerra Mundial, a União Soviética passou a disputar competições internacionais, no contexto da Guerra Fria, em que competia em primeiro plano com os países capitalistas, o caráter do esporte soviético se foi alterando. De um lado, as autoridades tenderam a focar esforços na formação de atletas de ponta. De outro, a população não podia esperar que todos, ou uma grande parte, ou mesmo uma parte significativa dela fosse composta por atletas de ponta. Assim, apesar de não ter ocorrido a intensa mercantilização das várias atividades esportivas que se verificava nos países capitalistas, a partir dos anos 1960 o esporte soviético, como atividade da sociedade como um todo, passou a entrar em declínio.

Tudo isso se deu em meio ao desenvolvimento da televisão. O grande público passou a se interessar mais em assistir a espetáculos com os atletas de ponta do que com o ideal de cada um e todos desenvolverem a cultura física. Será impossível voltar a esse ideal? Qual deve ser o papel do Estado no fomento às atividades esportivas? Deveria ser o mesmo da iniciativa privada, ou seja, subsidiar a formação de atletas de ponta, para torná-los aptos a desempenhar espetáculos lucrativos e prestigiosos? Ou deveria ser propiciar saúde, força, beleza e plasticidade físicas a toda a população? No Brasil, as coisas parecem estar invertidas: os subsídios para o esporte privilegiam os atletas de ponta, enquanto as pessoas comuns têm de gastar bom dinheiro em academias.