Em plena pandemia

Indígenas denunciam demissão em massa feita pela JBS em Santa Catarina

Apesar de Portaria da Secretaria de Saúde do estado de Santa Catarina que garante afastamento remunerado, a empresa dispensou 40 pessoas; trabalhadores denunciam fraudes nas demissões

comunidade Kaingang
comunidade Kaingang
Segundo liderança dos indígenas Kaingang, houve contaminação de duas pessoa no trabalho que levaram a covid-19 para as aldeias

(Atualizado às 12:58 de 2 de junho) São Paulo – Indígenas da Terra Indígena (TI) Serrinha, localizada no norte do estado do Rio Grande do Sul (RS) foram ao Ministério Público do Trabalho (MPT) denunciar uma demissão em massa promovida pela empresa JBS, no mês de maio. Os 40 indígenas que trabalhavam em um frigorífico da unidade Seara, do grupo JBS em Santa Catarina (SC), foram surpreendidos com o que chamam de fraude na demissão.

O espanto dos trabalhadores ocorre pois o desligamento ocorreu após a publicação da Portaria 312, de 12 de maio de 2020, da Secretaria da Saúde do estado de Santa Catarina. O documento determina o afastamento remunerado de indígenas dos frigoríficos por considerá-los parte do grupo vulnerável à covid-19, sem qualquer prejuízo de salário, até o final da pandemia.

Após a portaria do governo estadual de Santa Catarina, o Ministério Público Federal (MPF) publicou recomendação conjunta com o Ministério Público do Trabalho (MPT). Segundo o documento, poderiam ser adotadas como alternativas ao distanciamento a interrupção de contratos de trabalho, a concessão de férias coletivas (integrais ou parciais), a suspensão dos contratos de trabalho (lay off) e a suspensão do contrato de trabalho para fins de qualificação poderão ser adotadas para garantir o distanciamento social.

A advogada dos indígenas, Fernanda Kaingáng, aponta que a empresa possui grandes contingentes de funcionários indígenas em diferentes TIs. E para se esquivar de adotar medidas de proteção à saúde dos trabalhadores indígenas, colocou a data do aviso prévio de forma retroativa à determinação da Secretaria de Saúde de Santa Catarina, para fazer a dispensa sem seguir as ordens da Portaria 312, publicada dois dias antes da demissão coletiva dos trabalhadores da TI Serrinha. Ela também afirma que as verbas rescisórias não foram pagas adequadamente.

“A homologação do aviso prévio foi marcada para o dia 14 de maio, mas a JBS/Seara fraudou a rescisão, eles colocaram uma data retroativa, que seria no dia seis de maio. Com isso, os indígenas não foram assinar e nós fizemos uma notificação para as demais empresas, Aurora e Ecofrigo advertindo que se as empresas do ramo de carnes tomassem medidas de demissão dos indígenas, após a Portaria 312 da Secretaria de Saúde de SC, eles seriam alvo de uma Ação Civil Pública (ACP) por discriminação na demissão, por motivo de raça e de indenização por danos materiais. Além disso, os cálculos trabalhistas indicam que as verbas rescisórias não foram pagas adequadamente com os adicionais de insalubridade”, argumenta. A JBS nega e diz que a demissão foi feita no dia 6, “com o devido pagamento de verbas indenizatórias, incluindo o aviso prévio”.

A demissão ocorreu sem qualquer diálogo com os trabalhadores indígenas, segundo a petição 12.004/6 de Ação Civil Pública (ACP)* protocolada do MPT. “(Os trabalhadores indígenas) foram surpreendidos no dia 14 de maio de 2020 com o depósito de verbas rescisórias em suas contas bancárias, (e com) o envio de alguns termos de rescisão para o celular do Cacique da Terra Indígena Serrinha, Ronaldo Inácio Claudino, e a informação de que a empresa estaria enviando ônibus para que os trabalhadores assinassem suas rescisões no sindicato, com data de homologação nesse mesmo dia”, diz um trecho do documento.

O coronavírus nos frigoríficos e os indígenas

O MPT já registrou casos de coronavírus em 19 frigoríficos do Rio Grande do Sul e em ao menos seis de Santa Catarina. Do total de casos confirmados de covid-19 no Rio Grande do Sul, 30% são de trabalhadores do setor frigorífico. Ao todo, foram contaminados até o momento 2.399 empregados de 24 unidades frigoríficas localizadas em 18 municípios do estado, até o dia 28 de maio, segundo o órgão.

Em live promovida pelo senador Paulo Paim (PT-RS) em parceria com a Confederação Brasileira Democrática dos Trabalhadores da Alimentação da CUT (Contac-CUT), a Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação e Afins (CNTA) e o MPT, a procuradora do MPT no município de Passo Fundo (RS) Priscila Dibi Schvarcz, alegou que entre os principais fatores que auxiliam a propagação do vírus estão “a grande quantidade de trabalhadores em um mesmo setor, o transporte dos trabalhadores e a falta ou pouca renovação de ar”.

Após a explosão de casos de covid-19 em frigoríficos localizados em diversas cidades de Santa Catarina, Rio Grande do Sul e de outros estados do país ganharem forte repercussão na imprensa, o Ministério Público do Trabalho do estado do Rio Grande do Sul iniciou ações contra seis empresas do setor, entre elas a JBS e BRF. Os procuradores querem avaliar condições de higiene e cumprimento de recomendações sanitárias contra a transmissão da Covid-19.

De acordo com uma das lideranças da TI Serrinha, Joziléia Daniza Kaingang, houve contaminação de dois indígenas no trabalho levando a covid-19 para as aldeias. Os casos foram confirmados no dia 29 de abril. “Os indígenas que foram contaminados trabalham em frigoríficos. Eles iam em ônibus que saem das aldeias com cerca de 40 pessoas no mínimo, eram duas horas e meia na ida e mais duas horas e meia na volta.”

Ainda segundo a advogada Fernanda Kaingáng, a JBS justificou as demissões a partir de supostos problemas com a logística orçamentária de transporte dos indígenas, pois com a pandemia o número de trabalhadores dentro dos ônibus deveria ser reduzido. Apesar disso, Fernanda vê a justificativa com incoerência, uma vez que a empresa realizou doações milionárias para o estado.

“A JBS alegou que não se tratava de discriminação de maneira nenhuma, mas que eles estavam com problemas de logística, pois ficou muito caro fazer o transporte dos indígenas. Apesar disso, curiosamente cinco dias depois da demissão dos trabalhadores da TI Serrinha, a JBS fez uma doação de 21 milhões de reais para ajudar o estado do Rio Grande do Sul no combate ao coronavírus, já que eles dizemter um compromisso com o Brasil e com o povo brasileiro. Esse compromisso deles não se estende aos povos indígenas, que são os primeiros brasileiros?”, questiona a advogada.

Além disso, as ameaças de demissões já ocorriam constantemente desde o início do mês de maio, de acordo com o cacique da Terra Indígena Serrinha, Ronaldo Inácio Claudino, quando os indígenas se infectaram e tiveram de se afastar do trabalho.

A comunidade temia uma explosão de casos de covid-19 na aldeia, conta o cacique. O território indígena abrange os municípios de Ronda Alta, Três Palmeiras, Constantina e Engenho Velho. A TI conta com uma população de cerca de 3.500 pessoas, divididas em 650 famílias das quais uma pequena parcela possui empregos formais.

Segundo o indígena houve um pedido de ajuda para o procurador Edson Beas Rodrigues Júnior solicitando socorro do Ministério Público do Trabalho (MPT), que ainda não havia se manifestado sobre a vulnerabilidade dos indígenas. Apesar disso, não houve uma notificação da Procuradoria à JBS/Seara, em tempo hábil, para que a empresa se abstivesse de demitir os trabalhadores indígenas, sob pena de responder pela violação dos direitos coletivos desses trabalhadores, cuja vulnerabilidade é reconhecida pela portaria 312.

“A JBS começou a entrar em contato comigo falando que iam demitir os indígenas se eles não fossem trabalhar, demitir por justa causa. Achei errado, pois tem pessoas que trabalham há quatro, cinco anos lá e até mais. Como é que o meu índio vai sair sem o direito dele? Eu fui na Seara um dia e cansei só de viajar. É longe para o meu pessoal ir trabalhar, quem dirá eles que vão de ônibus. Acho que é muito injusto o que eles estão querendo fazer com a minha comunidade”, lamenta.

Indígenas trabalhavam em condições precárias

A demissão em massa de trabalhadores indígenas com suspeitas da covid-19, incluindo gestante, provocou revolta na comunidade, uma vez que os trabalhadores também eram tratados muitas vezes de forma discriminatória pelo frigorífico. Esse é o caso da indígena Miria Ritmo Joaquim que trabalha há cinco anos na Seara, na parte de abate de suínos.

Miria conta que os tratamentos no ambiente de trabalho divergiam entre indígenas e não indígenas. “Os trabalhos mais pesados eram sempre passados para nós indígenas, durante anos nunca fiz o rodízio no serviço mais leve e me incomodava bastante a dor no braço e nas pernas. Sempre pedi, mas eles nunca deixavam. Os não-indígenas contratados depois ficavam sempre com o trabalho mais leve. As refeições eram diferentes, nós indígenas só recebíamos banana de sobremesa e os não indígenas recebiam bolos, frutas e café”, relata.

Após trabalhar anos sem conseguir um aumento salarial, tendo suas solicitações ignoradas, Miria respondeu singelamente ter ficado arrasada com a demissão repentina e sem diálogo. “Eu fiquei arrasada, porque eu não sabia que eles iam fazer isso, sem nem falar com a gente.”

O indígena Joel Amaro, que trabalhava com os suínos, confirma o preconceito descrito por Mirna. Em seu caso, a falta de rodízio prejudicou sua saúde. “Trabalhei três anos e seis meses sem rodízio no serviço e isso me prejudicou muito. E fui demitido sem consulta médica para avaliar possíveis doenças causadas pelo esforço de repetição no trabalho”, contesta o indígena Kaingang.

Misael Amaro afirma que a empresa deixou de fornecer equipamentos de proteção aos funcionários. O trabalhador indígena tinha contato com a substância química metabissulfito, no setor de triparia de suínos. “Durante uma semana a empresa forneceu máscaras, luvas, óculos e a roupa branca como sempre. Mas na semana seguinte, os equipamentos de proteção sumiram, então fomos obrigados a trabalhar sem a proteção exigida, já que os equipamentos não foram mais fornecidos. O mais complicado era trabalhar sem proteção colocando um pó o metabissulfito na mucosa do suíno”.

A situação do trabalhador Oséias Kanheró é ainda pior, o indígena trabalhou por três anos e dois meses na JBS, na sala de corte de suínos. Segundo ele, o maquinário em que trabalhava estava quebrado, o que o colocava em perigo constante pela possibilidade de corte pela navalha da máquina. “Depois que a supervisora Natália entrou ela não cuidava na máquina, ela soltava pedaços para cima, era perigoso ir no olho e furar.”

O maquinário quebrado deixava os trabalhadores em situação de risco, foto protocolada na petição de ACP

Em nota, a JBS alegou que “o desligamento de 40 colaboradores da Terra Indígena Serrinha no dia 6 de maio ocorreu em virtude da descontinuidade da linha de ônibus que fazia o transporte dos colaboradores em um percurso de cerca de 600 km diários, ida e volta, até a unidade. As demissões foram feitas sem justa causa com o pagamento integral de todas as verbas indenizatórias previstas”.

“O racismo institucional é evidente, a discriminação na demissão desses trabalhadores é escandalosa e nós estamos esperando que o Ministério Público do Trabalho (MPT) possa realmente promover uma Ação Civil Pública (ACP) e condenar a JBS a uma indenização que faça justiça a afronta, ao dano que eles causaram. São pessoas que se submetem ao trabalho desumano, a todo tipo de discriminação dentro dos frigoríficos. São trabalhos que de cinco a dez anos inutilizam uma pessoa”, afirma a advogada Fernanda Kaingáng em busca de respostas da Justiça.

Procurado o Ministério Público do Trabalho de Joaçaba não respondeu aos questionamentos enviados até a publicação desta reportagem.

Após a publicação da reportagem, o Ministério Público do Trabalho protocolou uma Ação Civil Pública em relação à JBS. Na ação consta o pedido de indenização aos indígenas da TI Serrinha em valor aproximado de R$ 8 milhões.

*Para acessar a petição é necessário acessar o site do MPT: http://www.prt12.mpt.mp.br/servicos/movimentacao-de-procedimentos?view=procedimentos e digitar o número da notícia de fato: NF 000090.2020