Patrimônio ameaçado

Construções irregulares ameaçam terreiro de candomblé em Salvador, o mais antigo do Brasil

Riscos vieram à tona após denúncia das filhas e filhos de santo do terreiro Casa Branca, que temem desabamento de prédio construído desde 2019 sem alvará de permissão

Instagram @terreirocasabranca/Reprodução
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"Ao desabar, e os riscos disso acontecer são óbvios, destruirá a Casa Sagrada do Orixá Omolu e matará filhas e filhos de santo da Casa Branca", destaca o terreiro Casa Branca

São Paulo – A primeira instituição religiosa de matriz africana do país, o Terreiro Casa Branca – Ilê Axé Iyá Nassô Oka – localizado no bairro do Engenho Velho, em Salvador, está cercado por pelo menos 40 construções irregulares. Uma delas é um prédio que vem sendo erguido desde 2019 sem alvará de permissão e que ameaça as filhas e os filhos de santo do templo. Eles temem o desabamento da obra sobre o patrimônio cultural e religioso tombado há 39 anos pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). 

A denúncia veio à tona pelas redes sociais na última quarta-feira (29), no dia do aniversário de 474 anos da capital baiana. Quando os integrantes do terreiro denunciaram a obra, ela já contava com cinco andares, desafiando autoridades. “A construção segue sem qualquer acompanhamento técnico, e isso só aumenta os riscos”, escreveram. “Ao desabar, e os riscos disso acontecer são óbvios, destruirá a Casa Sagrada do Orixá Omolu e matará filhas e filhos de santo da Casa Branca”, acrescentaram, destacando o caso como uma “crônica de uma tragédia anunciada” e um “crime a céu aberto”. 

De acordo com a advogada Isaura Genoveva (ekedi de Ogum, iniciada na Casa Branca em 1990), a obra teve início no final de 2019. Já à época, a associação que representa o terreiro entrou em contato com o Iphan, pedindo um posicionamento ou interferência. No entanto, por conta da pandemia de covid-19, não foi estruturado um protocolo de denúncias. Apenas no ano passado, os trâmites legais tiveram início. Em setembro de 2022, a construção irregular acima da Casa Branca foi embargada pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (Sedur). 

Sem laudo estrutural

Mesmo assim, a obra seguiu em andamento. Apenas na última quinta (30), depois da repercussão do caso, a prefeitura de Salvador interditou novamente o prédio. No mesmo dia, porém, o portal g1 identificou homens trabalhando no quinto andar da construção irregular. Um dia depois, contudo, a Sedur foi ao local e demoliu esse último pavimento. A obra tem agora quatro andares, mas a comunidade local ainda aguarda a avaliação dos riscos por parte do município e do Iphan. 

Para a ekedi Isaura Genoveva, o risco de desabamento permanece. “A gente não tem um laudo que ateste a estrutura do imóvel, da construção. Não temos respaldo de que aquilo é seguro para o templo sagrado e as vidas que estão no entorno da casa. A gente precisa dos laudos técnicos que digam qual o melhor caminho ao caso. (…) Há um pedido para demolição, porque é uma área de preservação rigorosa, a Casa Branca é o primeiro monumento negro tombado aqui no Brasil. Ano que vem faz 40 anos de tombamento. Então é um patrimônio importante do país”, explicou a advogada à RBA

Terreiro histórico

O primeiro terreiro tombando, a Casa Branca inclui uma área de 6,8 mil metros quadrados em um terreno com declive que tem uma edificação principal – a Casa Branca – além das diversas Casas de Santo (Ilê Orixá) distribuídas à sua volta, em meio à vegetação ritual com árvores sagradas e outros assentamentos e habitações da comunidade local. 

O templo religioso foi reconhecido ainda em 1984. Os inscritos do Iphan, baseados na tradição oral, contam que, por volta da primeira metade do século 19, três africanas da nação Nagô fundaram o terreiro de candomblé em uma roça nos fundos da Igreja da Barroquinha, no centro de Salvador. Os levantes negros de resistência no período acabaram provocando uma forte repressão, o que agravou a perseguição às manifestações religiosas de matriz africana. 

Por conta disso, o terreiro da Casa Branca transferiu-se para o Engenho Velho, subúrbio da capital baiana, onde resiste até hoje. Há pelo menos 40 obras irregulares em seu entorno, mas o prédio, logo ao lado, é o que chama atenção pelo tamanho e sua descaracterização urbanística e arquitetônica do local. Em nota à imprensa, a secretaria municipal informou que a interdição da obra ocorreu após identificar material de construção no local. E que a obra já havia sido embargada em setembro de 2022 por não possuir alvará de construção. 

Racismo religioso

A Sedur alegou que vem realizando constantemente fiscalização na área. O Ministério Público da Bahia também reforça a denúncia de que a construção não tem projetos, nem arquitetônico e nem estrutural, o que apresenta riscos para a comunidade. A promotoria também divulgou que a obra é propriedade de um policial militar, que não teve o nome informado. Segundo o órgão, ele foi informado da necessidade de regularização do edifício. 

A advogada do terreiro destaca, contudo, o espanto da comunidade com a “morosidade” do processo. “Porque do tempo que se noticiou o primeiro fato, do início da obra irregular, até chegar em 2023, havia muitas ações que poderiam ter sido desenvolvidas para que não chegasse nesse ponto. Mas o proprietário do imóvel manteve a construção”, contesta. Para Isaura, o racismo religioso também explica a omissão por parte das autoridades. A área do terreiro ameaçada fica exatamente em cima da Casa de Omolu, o orixá guardião da saúde, doença e morte. 

“A denúncia que causou essa repercussão toda foi fruto de uma ação nossa, de um evento no terreiro de candomblé para discutir racismo religioso. Porque a gente entende que o racismo tem vários braços, é uma tecnologia transversal, que atravessa as comunidades de várias formas. E esse descaso com o movimento negro também pode ser caracterizado como um traço de racismo religioso. O que a gente espera é que a lei seja respeitada e efetivada, porque se tem dados, laudos, indicativo para demolição e responsabilização de quem não está cumprindo uma determinação legal, a gente espera que as autoridades do sistema de justiça cumpram seu papel”, finaliza a advogada e ekedi. 

Fundação Palmares se solidariza

A Fundação Palmares também se manifestou na sexta (31), solidarizando-se com o terreiro da Casa Branca. O órgão federal também repudiou “ações externas de tentativa de destruição deste patrimônio com reconhecimento mundial”. A Fundação divulgou que acompanhará a adoção das medidas jurídicas e administrativas no sentido de reversão do processo de tentativa de destruição do patrimônio.