Um pé no futuro, outro no atraso

Setor de cana se moderniza para competir lá fora, mas grande parte dos trabalhadores ainda é excluída

Dura rotina: ainda de madrugada, trabalhadores aguardam ônibus na entrada de Guariba (Foto: Lucas Mamede)

Começou mais uma safra de cana-de-açúcar. O período 2010-2011 fechou com recorde de 625 milhões de toneladas colhidas, estima a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Na região Centro-Sul, segundo a Unica (associação que reúne empresários do setor), chegou a 557 milhões de toneladas e deve atingir 568 milhões na safra 2011-2012, com 55% destinados à produção de etanol e 45%, à de açúcar. O setor sucroalcooleiro se expandiu e se modernizou nos últimos anos, ganhando o mercado externo, mas não ocorreu o mesmo com as condições de trabalho. Apesar de iniciativas de melhoria, grande parte ainda se caracteriza por jornadas exaustivas, más condições de higiene e de moradia e pouca qualificação. E o processo de mecanização em curso elimina cada vez mais vagas.

Em São Paulo, principal produtor brasileiro de cana (mais de 50% de todo o país), um acordo firmado em 2007 entre usineiros e o governo prevê o fim das queimadas em áreas mecanizadas em 2014 e, nas demais, em 2017. De acordo com a Unica, a mecanização, que dispensa as queimadas, já representa mais da metade da área colhida. Deve alcançar 60% nesta safra. Do lado dos trabalhadores, é uma ameaça ao emprego. 

Por causa  disso, em algumas regiões do estado, já são notadas alterações nas rotas migratórias. Entre as mais comuns do mundo da cana hoje estão as de Codó ou Timbiras (MA) para Guariba ou Pradópolis  e de Pedra Branca (CE) para Leme. Essas migrações temporárias, porém, tendem a diminuir nos próximos anos. 

“A introdução da colheita mecanizada reduziu em São Paulo a mão de obra braçal, que foi deslocada para o Triângulo Mineiro, Goiás e Mato Grosso”, diz o padre Antônio Garcia Peres, da Pastoral do Migrante em Guariba, palco de uma greve famosa, em 1984 (leia quadro na página 16). Cidade do interior paulista, a 350 quilômetros da capital, Guariba acostumou-se a receber migrantes principalmente do interior do Maranhão, um dos estados campeões em denúncias de trabalho escravo. Padre Antônio relata que o trabalhador preferiria continuar em São Paulo, porque em outras regiões as condições são mais insalubres e os ganhos, menores. Mas a falta de qualificação e de escolaridade o empurra para onde existir trabalho. “Esse é o grande drama da mão de obra rural do Brasil.” 

No início do ano, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo divulgou estudo sobre as condições nas lavouras de cana, baseado em inspeções da Vigilância Sanitária. A cada minuto trabalhado são feitas 17 flexões de tronco e aplicados 54 golpes de facão. As pernas ficam todo o tempo semiflexionadas e há extensão da região cervical da coluna. Por dia, são cortadas e carregadas, em média, 12 toneladas de cana e percorridos quase nove quilômetros. Ao final da jornada, o cortador perdeu oito litros de água. 

O levantamento servirá de base para uma nova regulamentação, segundo a secretaria. “O setor apresenta grandes contrastes na cadeia produtiva. Apesar da alta lucratividade, as condições de trabalho são ruins, geralmente, e põem em risco a saúde dos cortadores”, aponta o padre.

Essa realidade também chamou a atenção do Ministério Público do Trabalho, que em 2008 criou o Plano Nacional de Promoção do Trabalho Decente no Setor Sucroalcooleiro, em parceria com outros órgãos públicos. O objetivo é impedir que a expansão do setor se dê em função de condições de trabalho desumanas. 

Coordenador de forças-tarefa em Alagoas, Bahia e Rio Grande do Norte, o procurador Rodrigo Raphael­ Rodrigues de Alencar, do MPT alagoano, afirma que as fiscalizações precisam se intensificar. “Um único item não cumprido já causa enorme transtorno ao trabalhador. A atividade é quase sub-humana.” Nas fiscalizações de usinas entre 2008 e 2009, que resultaram em dezenas de termos de ajustamento de conduta (TACs) e ações civis públicas, os casos mais comuns encontrados foram falta de exame médico, transporte irregular e ausência de instalações sanitárias, de abrigo para refeições e até de água potável.

Outra situação comum é o tempo de percurso até o campo. As chamadas horas in itinere, que devem ser consideradas como horário de trabalho, nem sempre são respeitadas e pagas. “Às vezes são duas horas até o canavial”, observa Alencar. Em abril, o MPT notificou usinas em Mato Grosso do Sul, cobrando a incorporação dessas horas à jornada. Cláusulas em convenções e acordos coletivos contrariavam a legislação. O procurador também defende a contratação por prazo indeterminado, para garantir direito a seguro-desemprego ao final da safra e à multa do FGTS. Mas isso não ocorre, o que provoca conflitos. 

Na região de Ribeirão Preto (SP), uma das principais produtoras de cana do país, o esforço conjunto trouxe algumas melhorias. São itens como água gelada e lugar para sentar e almoçar. A jornada de trabalho, que já chegou a 12 horas diárias, em geral é das 7h às 16h. Os trabalhadores são registrados em carteira, eliminando o chamado “gato”, agenciador de mão de obra. 

Um drama relatado é a fixação de meta de produção, que pode excluir o trabalhador da próxima safra se não for atingida. A média vai de 8 a 12 toneladas/dia por trabalhador. “É bem sofrido mesmo”, diz João de Souza Silva, 25 anos. Em 2007 ele saiu de Timbiras para trabalhar no corte de cana em Guariba, depois de muito plantar arroz, feijão e milho em sua terra. Mora sozinho a poucos metros do local onde todos os dias, a partir das 5h, os trabalhadores esperam os ônibus que vão levá-los às áreas de cultivo. Dia desses foi barrado pelo motorista. Teria reclamado de viajar em pé em um trajeto de mais de duas horas. “É muita estrada de chão”, conta. João perdeu o dia, mas não o ânimo: “Não tem guerra para não enfrentar”. 

Em Pernambuco, a Fetape, federação dos trabalhadores rurais do estado, avalia que o acordo coletivo, assinado em outubro passado, trouxe avanços, além do reajuste salarial de 10,51%. O salário passou a R$ 547. O acordo incluiu garantia de contratação formal após cinco dias de trabalho, ampliação do período de afastamento remunerado para internação hospitalar e itens relativos a abrigo e alojamento.

Em Goiás, os 40 mil trabalhadores cobram reajuste de 34,7% no piso salarial – o salário-base atual é de R$ 606,77. A Fetaeg­, federação dos trabalhadores, quer fornecimento de alimentação, requalificação profissional e fim do trabalho precário e escravo. Segundo a entidade, poucas usinas se preocupam com o fato de o trabalhador ser obrigado a levar marmita.

Compromisso

A Unica estima que o número de empregados no setor sucroalcooleiro em São Paulo deve encolher de 260 mil, em 2006-2007, para 146 mil em 2020-2021. O comportamento é diferenciado entre as áreas de atividade: enquanto a indústria deve ganhar 20 mil empregados no período, de 55 mil para 75 mil, e a colheita mecânica multiplicar de 15 mil para 71 mil, os trabalhadores na colheita manual cairão de 190 mil para zero.

Em 25 de junho de 2009, a entidade participou do lançamento, em Brasília, de um compromisso nacional para aperfeiçoar as condições de trabalho. O presidente da Unica, Marcos Jank, destacou a grandeza do setor. “O Brasil responde, mundialmente, por um terço da produção mundial de cana-de-açúcar, 20% da produção e 40% das exportações de açúcar, 30% da produção e 60% das exportações de etanol.” Ele garantiu que a requalificação dos trabalhadores seria tratada como prioridade. 

“O processo de mecanização acelerou-se por conhecidas razões ambientais e econômicas. No entanto, a perda de empregos no setor ao longo dos anos é uma consequência negativa da mecanização, que agora será devidamente tratada por um amplo conjunto de políticas públicas e privadas no âmbito desse compromisso”, afirmou Jank, para quem a “alma” do acordo será valorizar as melhores práticas trabalhistas. 

Na mesma cerimônia, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva destacou que, “depois de brigar a vida inteira” contra o trabalho insalubre no campo, o desafio mudou. “Somos favoráveis a que esse trabalho insalubre seja cada vez menos feito manual­mente pelo homem. Mas aí entra o outro desafio: onde colocar esses trabalhadores?”

Em 2010, a Unica lançou o RenovAção, um projeto de requalificação. “Um módulo é para dentro da usina, outro é para a comunidade”, diz Maria Luiza Barbosa, assessora de responsabilidade social corporativa da entidade. Assim, os cursos podem ser voltados tanto para outras funções no próprio setor como para demandas específicas por região. Antes da atual safra, praticamente metade dos trabalhadores que passaram pelo projeto já estava exercendo outra atividade.

Maria Luiza conta que a mecanização criou novas necessidades. “A máquina precisa de 18 homens. Essas 18 profissões voltadas para a máquina não existiam, como soldador especializado em colhedora, porque não havia colhedora.”

Na fila 

Anísio Pequeno dos Santos, 28 anos, há dez na cultura da cana em Guariba, está na fila. “Estou esperando vaga para a escolinha (curso) de tratorista”, diz ele, pouco antes de pegar o ônibus para o trabalho. Sua jornada vai das 7h às 16h, com direito a uma hora de almoço, em marmita com valor descontado de R$ 1,90. “Alguns colegas já saíram”, conta Anísio, falando dos que perderam o emprego devido à mecanização. Ele diz que em dia ruim dá para tirar cerca de R$ 20. Em dias bons, de R$ 50 a R$ 60. Os trabalhadores ganham por quantidade colhida. 

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Para a professora Marcia Azanha Ferraz Dias Moraes, do Departamento de Economia, Administração e Sociologia da 

Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da USP, o impacto negativo sobre o emprego em São Paulo não é maior devido à expansão da produção. Mesmo o deslocamento para outras regiões é limitado, porque em outros estados as novas áreas de corte já são mecanizadas. 

A vinculação da atividade com trabalho escravo ou degradação do meio ambiente também exigiu mudanças. A formalização cresceu e ultrapassou a do cultivo de laranja ou de soja. “O setor melhorou porque o consumidor exige”, afirma Marcia. “O etanol virou produto de exportação. Não tem como vender um produto ligado a isso.”

A mesma colheitadeira que pode criar 18 funções pode corresponder a 80 cortadores a menos, reduzindo as oportunidades nessa função. Nas novas áreas de colheita, como Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, tudo já estará mecanizado, segundo a professora. Para atenuar o problema, ela sugere políticas públicas na região de origem dos trabalhadores. Assim, eles poderiam permanecer na terra natal, em vez de migrar atrás de um emprego incerto.

Manuel Vieira de Morais e sua mulher Zuleine estão prontos para voltar. Cinco anos depois de fazer uma viagem de dois dias e meio de Codó até Guariba, o maranhense acredita que é momento de fazer as malas e juntar toda a família novamente. Ele pediu para ser demitido. Já tem um terreno em sua cidade, no qual pretende trabalhar. Cinco dos seis filhos já se foram. O trabalhador, hoje auxiliar agrícola, não esconde a alegria ao falar do retorno. “Todo dia você sente saudade. Mas tem dia que bate mais.” 

Lições de uma greve

Guariba não gosta de ser lembrada pela greve de maio de 1984, deflagrada por cortadores de cana e colhedores de laranja e marcada por conflitos violentos. Durante algum tempo, os trabalhadores da região ficaram estigmatizados. Por outro lado, a revolta contra as más condições de trabalho representou o início de um lento processo de melhorias.

Para o presidente do Sindicato dos Empregados Rurais de Guariba, Wilson Rodrigues da Silva, a greve de 1984 contribuiu para acabar com a “era do gato” na região. “Só se trabalhava para terceiros, menos (a usina de) São Martinho. Era um período sem negociação coletiva, sem direito a material de trabalho, água gelada, proteção para almoçar”, diz Wilson, ressaltando que ainda falta melhorar a distribuição de renda.

“Não tinha horário pra nada, trabalhava do jeito que os outros queriam, não tinha registro…”, enumera Antônio Mariano, 66 anos, 44 safras. Transporte era na base do pau de arara, em caminhões abertos. Os óculos de proteção só vieram muito mais tarde, assim como luvas e caneleiras. “Muita gente machucava a vista, sofria corte, trabalhava de tênis”, conta, exibindo as marcas em seu corpo.

Colher até 17 toneladas de cana em um único dia permitiu fazer um bom pé de meia? “O que consegui foi esta casinha e criar meus (sete) filhos”, responde Antônio, que gosta de passar o tempo em um velho sofá no quintal.

Rota Maranhão-São Paulo

 
Cidade com 30 mil habitantes no leste do Maranhão, a 300 quilômetros da capital, São Luís, Timbiras é uma das principais fornecedoras de mão de obra para as usinas de cana e outros setores. 
 
“Praticamente três em quatro famílias tinham um membro migrando, não só para a cana, mas para a construção civil ou para a soja”, observa o professor Marcelo Sampaio Carneiro, coordenador da pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão (UFMA). 
 
A pedido da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ele pesquisou a migração do trabalhador de Timbiras para outras regiões. O trabalho começou em 2005 e teve uma segunda fase iniciada em 2008. Foram entrevistadas 114 famílias. Entre os principais locais de destino, Goiás (31,18%), São Paulo (30%) e Pará (6,45%). Outras regiões do próprio Maranhão receberam 19,35% dos trabalhadores – especialmente o município de Campestre do Maranhão, onde fica a destilaria Cayman. A cultura da cana foi a ocupação mencionada em mais da metade (54%) dos casos. Quase 61% tinham de 20 a 29 anos (um terço, de 20 a 24), 54% eram casados e 84%, homens. 
 
Essa migração é forçada pela falta de oportunidades no local, onde predomina a cultura do arrendamento. É uma região que também sofre o impacto da expansão da cultura da soja e de eucaliptos, reduzindo o número de agricultores familiares. “Uma área de latifúndio tradicional”, define Marcelo Carneiro. “Só não tem o coronel.” Teoricamente, segundo o pesquisador, seria mais fácil fazer reforma agrária no local, já que o preço do hectare não é muito elevado, mantendo assim o trabalhador na região. 
 
Também vinda de Timbiras, Fábia Francisca, 29 anos, está há um ano em Guariba. Cruzou o país em busca de melhores oportunidades. Trabalha como “avulsa” no corte de cana há poucos meses. “Mas vou voltar pra laranja”, promete.