Mercado devorador

Entregadores conquistam primeiros direitos, mas monopólio no setor avança

Após nova lei que garante direitos aos trabalhadores em aplicativos, Uber Eats anunciou sua saída do delivery de comida, reforçando o monopólio do Ifood

Rovena Rosa/Agência Brasil
Rovena Rosa/Agência Brasil
Luta dos entregadores passa pela combinação entre cooperativismo e sindicalismo, diz Paulo Lima, o Galo

São Paulo – Na semana passada, foi sancionada a Lei 14.297/22, que estabelece regras emergenciais de proteção a entregadores de aplicativo durante a pandemia. A legislação obriga as empresas a contratarem seguro contra acidentes, em benefício do entregador, durante o período de retirada e entrega de pedidos. Também estabelece assistência financeira aos entregadores que forem contaminados pela covid-19, além de outros cuidados específicos em relação à prevenção da doença. De acordo com a proposta aprovada no Congresso, as empresas deveriam garantir alimentação aos trabalhadores. Mas o presidente Jair Bolsonaro vetou esse e outros pontos. Os parlamentares têm até o início do próximo mês para apreciar esse veto.

Ainda assim, trata-se de uma primeira vitória importante da categoria, rumo a conquistas de direitos sociais. Durante a pandemia, os entregadores realizaram paralisações, greves e manifestações em defesa da vida e por melhores condições de trabalho.

Por outro lado, o setor de entregas cresceu enormemente nesse período de quase três anos desde a chegada da covid ao país, em março de 2020. Somente no primeiro ano de pandemia, o faturamento do Ifood, por exemplo, registrou salto de 234%. Porém, junto com o aumento da demanda, veio também a brutal exploração desses trabalhadores, que formam um retrato fiel da precarização do emprego no país.

Outra notícia que marcou o setor no início do ano envolve a Uber Eats. A empresa anunciou o fim do serviço de delivery de restaurantes. Coincidentemente o anúncio ocorreu um dia depois da sanção da lei que amplia direitos dos entregadores. A Uber Eats, contudo, afirma não haver relação entre um fato e outro. Alega que vai concentrar seus negócios nas entregas de compras de supermercados. Com isso, aumenta a concentração do setor – até então, o Ifood já detinha cerca de 70% do mercado de entrega de alimentação.

“Solução Flaskô”

Se o setor fosse “sólido”, a solução para a saída da Uber Eats seria ocupar a empresa, colocando-a sob controle dos próprios trabalhadores. Paulo Lima, o Galo, integrante dos Entregadores Antifascistas, foi quem cogitou a hipótese. Nesse sentido, ele citou o exemplo da Flaskô, empresa do setor plástico em Sumaré (SP), que é administrada pelos trabalhadores desde 2003.

“A Uber Eats teria que virar Flaskô. Mas a coisa não é mais sólida. Então a gente não tem fábrica para ocupar. Se tivesse, a gente ocupava”, disse Galo. Ele participou de uma live no canal da economista-chefe do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE), Juliane Furno. Em discussão, desafios para organizar a categoria, em meio ao avanço monopolista. “Como fazer a Flaskô desse setor? É a luta que a gente tem que travar para descobrir”, completou.

Entre a cooperativa e o sindicato

Sem respostas prontas, Galo classificou como idealista a proposta de criação de uma cooperativa de entregadores, com aplicativo próprio. Tal ideia, segundo ele, parte quase sempre de “acadêmicos”, “brancos” na maioria, que não conhecem, na prática, a realidade da categoria. Ele também afirmou que falta consciência de classe a parte de seus colegas, que enxergam o cooperativismo não como “ferramenta de luta contra a opressão”. Mas apenas como um captador de demandas.

“Os caras falam que a coisa é fácil. O que a gente faz, no futuro, quando os entregadores começarem a se voltar contra a própria cooperativa, se as coisas ficarem mais difíceis?”, explicou. “O cara entrou, por exemplo, ganhando R$ 3 mil reais. Mas, depois, passa a ganhar R$ 1.500. Ele vai dizer o quê? Que o Galo é corrupto, que está colocando metade do salário dele no bolso”.

Outro risco é que a própria cooperativa poderia virar uma “presa fácil” dos aplicativos, muito mais poderosos em termos financeiros. “O que vão dizer no dia em que a cooperativa estiver mal das pernas, e as assembleias girarem em torno da solução de deixar os aplicativos contratarem os nossos serviços? A gente achou que organizou o trabalho para nós, mas acabamos organizando para o aplicativo”.

Para Galo, uma das alternativas seria combinar o cooperativismo com o sindicalismo, “e tirar uma coisa nova daí”. “Uma coisa que tanto capte a demanda – porque o trabalho não é mais ‘sólido’ e a gente precisa trazer essa solidez de volta. E, além disso, que também organize o trabalho”.

Políticas públicas

Para Juliane Furno, uma iniciativa como essa precisaria contar com a participação do Estado. Com políticas públicas de assistência técnica e de crédito, como forma de enfrentar as grandes empresas do setor. Sem isso, a proposta do cooperativismo acaba esbarrando no discurso liberal. “Se assemelha, por exemplo, ao ideário do partido Novo”, afirmou. “Monte a sua própria empresa, seja sua própria empresa, faça o seu próprio negócio”, provocou.

Por outro lado, ela também destacou que o movimento sindical tem dificuldades em lidar com as demandas dos entregadores. “É uma categoria jovem, majoritariamente negra, que não tem o mesmo nível de qualificação do operariado fabril, com condições de trabalho muito distintas”. No entanto, é na luta por direitos que ela aposta suas fichas.

“É a luta por essas melhoria nas condições de trabalho que mobiliza e integra as pessoas. Inclusive para tomar consciência dos limites disso”. Para ela, o principal desafio é como transformar essa luta por demandas imediatas e concretas em consciência política.

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