Precariedade

Trabalho de entrega por aplicativos é desafio para sindicatos e exige regulação: riscos a mais, ganhos a menos

Entregadores são majoritariamente homens, jovens e negros, mostra pesquisa CUT-OIT. Muitos fazem jornada várias vezes maior que a legal, sem que isso resulte em mais renda. Empresas “transferem” gastos para os trabalhadores

Marcelo Justo/Agência Senado
Marcelo Justo/Agência Senado
Realidade aponta jornada excessiva, pouca estrutura, despesas não assumidas pelas empresas e pouca proteção social

São Paulo – O trabalho de entrega por aplicativos, modelo de atividade econômica em expansão, vai exigir uma ação sindical capaz de regular a função e garantir direitos mínimos. Assim, a pesquisa divulgada nesta sexta-feira (17) pela CUT, em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), joga luz sobre a questão. Já se trata de um setor com quase 1 milhão de pessoas, de acordo com dados do IBGE. Mas com menos direitos que qualquer empregado formal. E diferenças expressivas de renda e jornada, um desafio a mais para a regulamentação da atividade, que já tem registrado alguns protestos públicos.

“Esse novo modelo de produção capitalista vai criar um grupo muito pequeno de trabalhadores altamente qualificados, ganhando muito bem, uma grande massa de trabalhadores precarizados e eventuamente uma grande massa de trabalhadores não empregados, sem direitos, que eu chamo de não trabalhadores”, afirma o secretário de Relações Internacionais da CUT, Antônio Lisboa. Ele foi um dos responsáveis pela pesquisa, que durou 18 meses e mapeou o dia a dia de entregadores por aplicativos no Distrito Federal e em Recife.

“A gente não sabe se volta pra casa vivo”

Um deles é Alessandro, mais conhecido como Sorriso, motoboy há mais de seis anos em Brasília. “Estamos trabalhando cada vez mais e ganhando cada vez menos”, diz, citando movimentos recentes da categoria pelo reivindicando itens como aumento da taxa mínima, reajustes anuais da taxa de entrega, fim de bloqueios arbitrários. “Melhores condições pra gente voltar pra casa com dignidade. A gente não sabe se volta pra casa vivo”, afirma Sorriso, lembrando que o trânsito deixa mortos e sequelados. Segundo ele, com as mobilizações aos poucos as empresas “estão abrindo diálogo”.

Quem também gravou depoimento para a live de lançamento foi Rodrigo Lopes, um dos criadores da Associação de Motofretistas com Aplicativos de Pernambuco (Amap). “(A gente) luta desde 2018 em busca de melhoria para esses heróis. Precisa chegar uma pandemia para mostrar o valor…”

Diálogo tripartite e trabalho decente

O diretor do escritório da OIT no Brasil, Martin Hahn, lembrou que essa é uma discussão que vem ganhando espaço em todo mundo. “De que forma podemos trabalhar para assegurar trabalho decente para todas as pessoas”, explica. “A organização tem falado dessa questão, mas até agora não tínhamos uma abordagem para realmente fazermos propostas.” Para ele, os dados expostos agora, na pesquisa, podem alimentar inclusive uma discussão tripartite (empresários, governo e trabalhadores) no escopo da entidade.

Dados divulgados pela CUT mostram que alguns países já têm feito essa discussão. A Espanha, por exemplo, aprovou recentemente uma legislação específica (Ley de Riders) em que reconhece vínculo empregatícios. No Reino Unido, a Suprema Corte decidiu que os entregadores da Uber devem ser reconhecidos como workers, uma classe específica de trabalhadores com acesso a alguns direitos (menos que os employees). No Brasi, há, entre outros, o Projeto de Lei 4.172/2020, do deputado Henrique Fontana (PT-RS).

Desprotegidos e sem direitos

O presidente da CUT, Sérgio Nobre, lembra que essas novas formas de organização do trabalho foram o principal tema do último congresso da entidade, em 2019. “Cinco meses depois, fomos duramente atingidos pela pandemia”, lembra, citando a “inércia” do governo e o processo de fechamento de várias empresas. O desemprego e a informalidade aumentaram. Os trabalhadores de entrega por aplicativo atuam, lembrou, “de maneira maneira muito precária, desprotegido, sem sindicato e sem direito.”

Para piorar, um grupo de trabalho ligado ao governo apresentou recentemente sugestões que o dirigente resume como “desmonte total da estrutura sindical brasileira e flexibilização total da legislação trabalhista”. No caso dos aplicativos, a proposta é de não reconhecer o vínculo de emprego. “Eles proíbem a regulação. No início do ano que vem queremos apresentar um modelo de mudança e de proteção desses trabalhadores”, adianta Sérgio Nobre.

Trabalhador não é mercadoria

A secretária-geral Instituto Observatório Social (IOS), Lucilene Binsfeld, a Tudi, vê um momento estratégico para o debate sobre trabalho decente e diálogo social, conceitos da OIT. “Essa pesquisa nos aponta vários elementos. (…) A grande maioria dos trabalhadores vê a necessidade de se organizar. A pesquisa também mostrou a falta de compromisso das empresas. Trabalhador não é mercadoria.”

Já o professor Rafael Grohmann destaca que o levantamento mostrou também que os entregadores “não são seres passivos nesse cenário, vão tentando enfrentar esse poder algoritmico diariamente”. Ele lembra que algumas plataformas vêm tentando uma certa cooptação nesse debate. “Querem criar princípios rebaixados de trabalho decente”, afirma o coordenador, no Brasil, do projeto Fairwork, presente em vários países e ligado à Universidade de Oxford.

Erosão de direitos

Em um contexto de “erosão” de direitos sociais, as plataformas digitais aceleraram esse processo, afirma o professor Ricardo Festi, do Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e Teoria Social da Universidade de Brasília (UnB), uma das entidades que atuaram na pesquisa de campo. Foram 39 entrevistas com entregadores de janeiro a março deste ano no Distrito Federal, onde a taxa de desemprego está em 20%, a informalidade chega a 40% e o setor de serviços responde por 95% da atividade.

Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Covid, do IBGE, mostram 7.504 entregadores no Distrito Federal. São em grande maioria (92%) homens, na maior parte (51%) solteiros e jovens (48% têm de 19 a 30 anos). Levam de 30 a 40 minutos para chegar ao local de trabalho. Na pesquisa coordenada pela UnB, a maioria trabalhava para o iFood, mas também atuava com outros aplicativos, e 89% usavam bicicletas.

Renda líquida “negativa”

Os pesquisadores fizeram perguntas sobre renda bruta dos entregadores e gastos (com equipamento, celular, alimentação). Assim, em média, o ganho bruto desses trabalhadores ficava em R$ 2.400, mas o líquido caía para R$ 1.237,50 na mediana. Perto, assinala Festi, do piso de motofretistas no Distrito Federal (R$ 1.172,63) e abaixo da média calculada pelo IBGE na Pnad Covid (R$ 1.727,60).

Mas os dados divididos pela jornada revelam enormes discrepâncias – de jornada e remuneração. “Valores gritantes”, diz o professor. Um dos entregadores relatou trabalhar nos sete dias da semana, 13 horas por dia, resultando em jornada semanal de 91 horas, muito acima do limite legal de 44 horas. Isso para ganhar renda líquida de R$ 215, ou R$ 0,59 por hora.

Outro trabalhava também os sete dias, fazendo 18 horas de segunda a sexta e 12 aos sábados e domingos. Jornada semanal: 114 horas. Renda líquida: menos R$ 390, ou menos R$ 0,86/hora. Nesse caso, ele teve despesa adicional, que o professor não precisou se uma punição da empresa ou gasto com a motocicleta. São trabalhadores submetidos a uma pontuação, que pode resultar em menos ou mais ganhos, além de provocar concorrência interna.

“Logado” o tempo todo

O professor Roberto Véras, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), lembra que as entrevistas em Recife foram feitas por teleconferência, o que de certa forma foi positiva, porque as conversas duraram em média duas horas. Foram ouvidos 44 entregadores. Ele lembra que, de 1,670 milhão de ocupados na região metropolitana, 450 mil (27%) eram trabalhadores por conta própria (Pnad Contínua, do IBGE, 2020), segmento em ue se insere a categoria que foi alvo da pesquisa.

Com base em dados da Pnad Covid de novembro do ano passado, o número de motoboys e entregadores era de 42 mil em Pernambuco e 24 mil na região metropolitana de Recife. Dos 44 entrevistados, 26 (59%) usavam bicicleta e 18 (41%), motos. Também majoritariamente homens, não brancos, jovens e com nível “mediano” de escolarização. Segundo o levantamento, 41% deles foram demitidos de outro trabalho e 31% já estavam desempregados e viram os aplicativos como melhor alternativa de renda. “Só 9% eram e continuaram autônomos. A maioria veio do emprego assalariado”, diz Véras.

Cerca de 80% cumpriam jornadas (muito) acima das 44 horas semanais, o que também desmonta o argumento empresarial de que os trabalhadores têm mais tempo livre. Considerando receitas e despesas (“Há muitas despesas que são transferidas para os trabalhadores”, observa o pesquisador), a renda líquida média ficava em torno de R$ 1.083 (considerando ganhos adicionais, fora aplicativos), enquanto a mediana, que o professor considera um retrato mais próximo da realidade, era de R$ 895 – e de R$ 625 apenas com aplicativos, bem abaixo do salário mínimo, atualmente de R$ 1.100.

Entre as condições de trabalho, muitos citaram a necessidade de estar “logado” o tempo todo, e em mais de um aplicativo. A pesquisa detectou ainda falta de estrutura de apoio, pelo poder público, para suprir necessidades como descanso, refeições, acesso a banheiro, suprimento de água e carregamento de celular.

Confira aqui a íntegra da pesquisa.


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