Exploração

Para fiscais do Trabalho, chamar entregador de ‘empreendedor’ é falácia e esconde vínculo

Auditores contestam argumentação de empresa, que se apresenta como intermediadora. E afirmam que entregadores não têm autonomia

Felipe Campos Mello/Fotos Públicas
Felipe Campos Mello/Fotos Públicas
Trabalhadores no setor de aplicativos fizeram uma greve pioneira em 2020

São Paulo – “À luz da realidade”, a Rappi é uma empresa de transporte e entregas rápidas, não de tecnologia, concluem auditores-fiscais do Trabalho, que durante meses se dedicaram a acompanhar, em São Paulo, o dia a dia daqueles que percorrem as cidades levando encomendas. As conclusões dos fiscais foram encaminhadas ao Ministério Público do Trabalho (MPT). O auto de infração, com mais de 200 páginas, retoma uma questão ainda não pacificada no Judiciário, que tem decisões contraditórias sobre o tema.

O setor já foi alvo de uma greve, em 2020. Na esteira do movimento, apareceram diversos projetos com propostas de regulamentação da atividade. Alguns são anteriores à paralisação. Há um emaranhado de propostas em tramitação, com alguns projetos apensados (anexados) a outros. (Confira algumas ao final do texto.)

Autonomia? Não existe

Mas a fiscalização não tem dúvida: entregadores que trabalham com aplicativos, como a Rappi, não têm nada de autônomos, como as empresas do setor querem fazer crer. São funcionários, subordinados, que deveriam ser registrados. Chamá-los de empreendedores, com liberdade para exercer sua atividade profissional, é uma “falácia”. “A autonomia simplesmente inexiste, pois os entregadores não determinam a forma de prestação dos serviços, nem mesmo os preços”, aponta trecho do relatório, ao qual a RBA teve acesso.

De acordo com os fiscais, apesar de não haver vínculo formal, estão presentes todos os requisitos da relação de emprego: pessoalidade, não eventualidade, subordinação e onerosidade. São “empregados contratados indevidamente como autônomos” para trabalhar como entregador, usando motos ou bicicletas. Eles entrevistaram 100 entregadores, mas a maioria não quis ser identificada, temendo represálias.

Proveito da pobreza

Os auditores entendem que a empresa – que se apresenta como simples intermediadora – se aproveita do chamado desemprego estrutural para recrutar sua mão de obra de forma abusiva. E descumprindo a legislação trabalhista. Se algum deles reclamar das condições de trabalho, a “reposição” é imediata.

Afinal, conforme constataram os fiscais, a maioria desses entregadores é formada por jovens de baixa renda, moradores na periferia, em comunidades e favelas de São Paulo. Em resumo, “jovens vulneráveis social e economicamente”. Assim, a empresa se beneficia de fatores como ausência de regulamentação e legislação específica, a fragilidade da representação profissional e a demora do poder público. Com isso, o faturamento cresce com base em sonegação de direitos trabalhistas e previdenciários.

Atividade é a entrega

Não há um número preciso sobre a quantidade de entregadores em atividade. O relatório traz uma estimativa de mais de 7 mil entregadores, entre ciclistas e motociclistas, com cadastro ativo ou inativo, que prestaram serviços à Rappi até dezembro, apenas no município de São Paulo. Seriam 200 mil em nove países da América Latina, a maior parte no Brasil.

“Eles (Rappi) realmente produzem tecnologia de informação. Mas o objeto social, e atividade econômica principal, é o serviço de entrega rápida”, diz o auditor Rafael Neiva, que participou do trabalho de fiscalização, ao lado de Rafael Augusto Silva. Ambos integram o grupo de combate à informalidade e à fraude nas relações de emprego da Superintendência Regional do Trabalho em São Paulo (SRT-SP), antigamente conhecidas como Delegacias Regionais, vinculadas ao extinto Ministério do Trabalho. Neiva também questiona o argumento de “autonomia” apresentado costumeiramente pela empresa. “Como é que o autônomo não define o preço do próprio serviço?”

Sem proteção social

Da mesma forma, os entregadores não definem as próprias rotas. Segundo Rafael, é uma relação de trabalho sem qualquer proteção social e com todos os riscos apenas para quem está nas ruas. E ainda estão sujeitos a punições, como ser bloqueado pelo aplicativo ou acabar direcionado para áreas de menor demanda. Além disso, recusar um serviço não descaracteriza a subordinação, como previsto na própria CLT, em artigo (452) sobre o trabalho intermitente.

Os fiscais afirmam que não existe autonomia nem independência nessa relação. Afinal, argumentam, os entregadores representam os interesses da empresa, usam roupas e identificações, prestam serviço conforme orientações da empresa e recebem pagamento determinado pela Rappi. Os pagamentos são operacionalizados por uma contratada (SmartMEI), em cujo aplicativo o entregador deve se inscrever para receber o “salário”.

Retórica patronal

Com base em informações parciais prestadas pelas duas empresas – mesmo notificadas, não forneceram todos os os documentos exigidos – e nas entrevistas, os fiscais concluíram que a tecnologia é uma “atividade secundária”. Assm, é utilizada para seu efetivo objeto social, que são os serviços de frete e entregas. “A retórica utilizada pela autuada, negando os serviços de entregas como sua atividade econômica, é parte de uma complexa, plena e abusiva transferência de riscos do empreendimento aos entregadores.”

Esses trabalhadores firmam o que os auditores chamam de contrato de adesão, “em que somente uma das partes, unilateralmente, determina termos e condições”. Dessa forma, acrescentam, “a suposta liberdade dos entregadores é manipulada pelos algoritmos, seja pela concessão de incentivos e benefícios, de um lado, seja pela aplicação de sanções e punições, de outro”. Algumas “promoções” levam os entregadores a trabalhar por até 24 horas seguidas. O contrato não inclui deveres da contratante, só dos contratados.

Limbo jurídico

Os fiscais afirmam que, mesmo com alternativas legais (trabalho intermitente, tempo parcial ou CLT, a empresa mesmo o próprio trabalho celetista em tempo integral, a empresa escolheu o caminho da “negação” de obrigações. Assim, mantém seu negócio “em verdadeiro limbo jurídico”.

Câmara tem várias propostas sobre o tema, mas tramitação está parada
(Foto: Najara Araujo/Câmara dos Deputados)

 Propostas no Congresso

Do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). Pelo PL 3.754, os trabalhadores em aplicativos passam a ter direitos básicos. Está parado desde julho,

Do deputado Márcio Jerry (PCdoB-MA), altera a CLT para acrescentar direitos aos que prestam serviços de entrega de mercadorias por meio de aplicativos. Tramitação também parada.

Do deputado Bira do Pindaré (PSB-MA) e outros. Trata de itens como equipamentos de proteção e remuneração. Última movimentação ocorreu em outubro.

Apresentado pelo deputado Eduardo Bismarck (PDT-CE), é específico para entregadores que usam bicicleta. Aguarda relator em comissão.

Restrito ao período da pandemia, o projeto do deputado José Airton Félix Cirilo (PT-CE) dispõe equipamentos e materiais de proteção. Aguarda despacho do presidente da Câmara.

Apresentado em 10 de julho, o PL 3.748, de Tabata Amaral (PDT-SP) e outros, institui o regime de trabalho sob demanda. Foi anexado a outro projeto (6.015).

De Mário Heringer (PDT-MG), também trata de condições de trabalho e regularização perante a Justiça do Trabalho. Também foi anexado, por sua vez, ao PL 5.069.

De Gervásio Maia (PSB-PB), que apresentou a proposta em setembro de 2019. Aguarda parecer em comissão.


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