Passado e futuro

Caso Volkswagen e ditadura: os percalços na busca da verdade histórica

Depois de cinco anos de discussão, empresa fecha o acordo com Ministério Público. Ex-trabalhadores celebram, mas críticas refletem dificuldades da transição brasileira

Adonis Guerra/SMABC
Adonis Guerra/SMABC
Sob o olhar da avó, Gustavo 'assina' o acordo e homenageia Lúcio Bellentani (cartazes). Wagnão e Tarcísio valorizam negociação

São Paulo – A recessão do início dos anos 1980 levou a uma onda de desemprego, atingindo em cheio a indústria automobilística. Assim, em março de 1981, um angustiado funcionário da Volkswagen, com quase 15 anos de casa, escreveu ao ministro-chefe da Casa Civil, general Golbery do Couto e Silva, para pedir “proteção” junto à diretoria da empresa e preservar seu posto de trabalho. A mensagem mostra um dos muitos perfis presentes no caso Volkswagen, envolvendo as ações de colaboração da empresa com perseguições pela ditadura.

Na carta, o funcionário apresentou seu currículo. Era um “ex-integrante da Revuçao (sic) de 31 mar 64 (na qual me empenhei desde 1961), ex-colaborador da Agência de São Paulo (do Serviço Nacional de Informações, o SNI), ex-membro do Ipes (o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais, que deu sustentação ideológica ao golpe)”, entre outras qualificações. Que inclua ainda um curso de informação e contra-informação. Para completar, apresentava o ex-ministro Delfim Netto como “testemunha” de seu passado.

A montadora passava por “situação aflitiva”, segundo ele, devido à queda nas vendas. O funcionário dava números, informando que o efetivo, que era de 46.025 em dezembro, já havia caído para 41.451. E deveria encolher mais. “Estando eu atualmente com 47 anos, a perspectiva de um desemprego assusta-me bastante. Tenho esposa, um filho no curso superior e outro preparando-se para os vestibulares”, contou.

Acordo polêmico

Não se sabe se ele escapou do corte. Mas a carta que integra os documentos do caso Volkswagen chegou a Golbery, que a encaminhou à agência central do SNI, anexando seu próprio cartão de visita, conforme mostram documentos registrados no Arquivo Nacional. É mais um caso de demonstração da proximidade entre a ditadura e a Volkswagen, que há poucos dias assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) se comprometendo a pagar indenizações, entre outras ações de reparação, negociadas com três instâncias do Ministério Público – Federal (MPF), do Estado de São Paulo (MPE) e do Trabalho (MPT).

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Inédito no país, o TAC causa polêmica. Quem critica o acordo avalia que a empresa deveria ceder mais, inclusive com a criação de um centro de memória específico para os trabalhadores. Quem o defende ressalta as dificuldades da negociação, que já durava cinco anos. E lembra que muitos ex-funcionários perseguidos na ditadura estão morrendo.

Avanço possível

“Todo acordo que você faz nunca é 100% de pleno atendimento a todo mundo. Mesmo assim, nós avançamos profundamente”, afirma Tarcísio Tadeu Garcia Pereira, que preside a Associação Heinrich Plagge, de ex-trabalhadores. Ele entrou na fábrica da Volks em São Bernardo do Campo em 1969, aos 16 anos. “Sou da geração AI-5”, diz, lembrando do ato institucional baixado pela ditadura em 13 de dezembro de 1968.

Plagge também trabalhou na Volks. Foi preso e torturado. Morreu em 2018. No ano passado, morreu Lúcio Bellentani, que presidia a associação. Seu caso tornou-se internacionalmente conhecido após o lançamento de um documentário na Alemanha sobre o caso das relações da Volkswagen com a ditadura brasileira. Ele foi preso na própria fábrica, em 1972, com ajuda da empresa.

Tarcísio entrou no setor da ferramentaria da Volks. Setor 382, lembra. “Fui deslocado para trabalhar como ajudante de um magrelão, de bigode, que fumava muito”, recorda. Era o próprio Lúcio Bellentani, que ele conheceu em janeiro de 1970. Tempos de conversas cautelosas, medo de falar, vigilância ostensiva. Mesmo fora da fábrica. Se o trabalhador fosse no clube da empresa no fim de semana, dependendo do que falasse poderia ser chamado na segunda-feira para dar explicações.

‘Chiqueirinho’ na fábrica

Nos banheiros da fábrica, se havia certa quantidade de trabalhadores, aparecia sempre um guarda, que poderia pedir a carteirinha funcional. E havia o famoso “chiqueirinho”, espécie de prisão interna, onde empregados ficavam confinados. Para humilhar e intimidar.

Seis trabalhadores foram presos em 1972. “Dois desapareceram por completo”, diz Tarcísio. Ao longo do tempo, avalia o ex-metalúrgico, a montadora foi passando “da brutalidade para a inteligência”, no sentido do monitoramento de “subversivos”. “Eu era monitorado desde 1975, a Volkswagen já enviava informações para os órgãos de repressão. E, no entanto, fiquei até 1978. (A empresa) permitia que ficassem lá dentro para rastrear e pegar os contatos de toda uma base.”

Idas e vindas

Ele defende o acordo, aprovado em assembleia realizada na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC em 24 de setembro. E destaca o papel da entidade na discussão. “Teve dois momentos em que a Volkswagen se retirou da negociação. O Wagnão (Wagner Santana, presidente do sindicato e funcionário da Volks) conseguiu sensibilizar a empresa.” O Comitê Mundial de Trabalhadores na montadora também participou.

Para a advogada Karina Goldberg, do escritório FCDG, que participou das negociações em nome da empresa, o acordo passou por um processo de maturação. “Os próprios MPs precisavam avaliar a melhor forma de fazer um acordo.” Segundo ela, as conversas estavam avançadas, mas a pandemia teve impacto grande no processo. “O que é inédito é a importância da questão histórica para a democracia brasileira.”

‘Não podemos esperar mais’

O ex-metalúrgico Tarcísio rechaça a afirmação de que o TAC exclui um memorial do trabalhador, ponto central das críticas. Segundo ele, esse espaço estará assegurado no casarão da Avenida Brigadeiro Luís Antônio, centro de São Paulo, onde funcionava a Justiça Militar. O prédio está sob responsabilidade da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil.

“Não podemos esperar mais. A cada dois, três meses, morre um dos nossos”, diz Tarcísio. “Nós avançamos até onde foi possível. Não basta impor uma vontade nossa, se não compreendemos o momento da política nacional. Estamos num tempo de trevas.” Mesmo com limitações, ele ressalta o fato de uma multinacional reconhecer fatos ocorridos quase 50 anos atrás. “Temos alguns companheiros que nunca mais conseguiram se reerguer na vida.” Da indenização total, de R$ 36,3 milhões, R$ 16,8 milhões cabem à associação para repartir entre ex-trabalhadores, com critérios definidos por um árbitro independente e supervisão do MPT. (Confira aqui o TAC.)

Ele também acredita que esse pode ser um primeiro passo para responsabilizar outras empresas. Muitos passos nesse sentido já foram dados, entre outras organizações, pelo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas) e pela Comissão Nacional da Verdade, que em seu relatório dedicou um capítulo à perseguição contra trabalhadores e sindicalistas. Outras montadoras, bancos, estatais: “Eles deixaram as digitais de todos os crimes”.

O acordo foi assinado, simbolicamente, por Gustavo Bellentani, de 10 anos, neto de Lúcio. “Eles eram muito grudados”, conta Maria Sérgia, mulher do ex-metalúrgico.


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