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No país da informalidade, ambulantes na CPTM protestam pela sobrevivência: ‘Queremos trabalhar’

Retrato do desemprego e da precarização nos trens e metrôs de São Paulo, marreteiros pediram em ato nesta quarta (5) apoio para a formalização da atividade e o fim da truculência dos seguranças

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Grupo de 50 vendedores ambulantes chegou a bloquear um dos trilhos por alguns minutos para protestar por liberdade de trabalho

São Paulo – Henrique Carneiro de Souza repetiu, na tarde desta quarta-feira (5), sua disputa diária com o volume dos alto-falantes dos vagões dos trens da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Mas desta vez para protestar. Vendedor informal há oito anos, Henrique era um dos cerca de 50 marreteiros, como são popularmente chamados, que numa das plataformas da Estação Luz, no centro da capital paulista, pediam liberdade de trabalho e o fim da violência praticada contra eles por agentes de segurança da companhia.

O rigor das abordagens e o aumento das apreensões de mercadorias provocaram o protesto, que ocorreu de forma espontânea e improvisada. “Eles colocaram uma equipe aqui e não estão deixando nós trabalharmos. Estamos só correndo atrás, olha aqui o tanto de pai de família, olha o tanto de trabalhador”, apontava o ambulante, representando o grupo. 

Sobre os trilhos da estação, uma das maiores e mais movimentadas da Grande São Paulo, os vendedores informais gritavam “Queremos trabalhar!”, enquanto eram acompanhados pelos olhares vigilantes de policiais ferroviários, soldados da Polícia Militar e de seguranças terceirizados, muitos deles armados.

O ato durou poucos minutos, mas foi o suficiente para impedir a chegada de um trem. “Estamos fazendo essa manifestação pra ver se chega no governo, a gente quer trabalhar”, reforçava Henrique.

A “equipe” mencionada pelo vendedor é formada pelos “guardas da G8”, da empresa Comando G8, que teve licitação homologada em 21 de janeiro e presta serviços na Linha 11-Coral  desde o início deste mês, como consta do Diário Oficial do Estado do último dia 24.

Com contrato de R$ 101 milhões, a terceirizada é uma das contratadas pela CPTM para ser responsável pelos serviços de vigilância e segurança patrimonial nas instalações dos trens. 

Fama de mau

Em cinco dias de atuação, “os guardas da G8” vêm ganhando fama mesmo é pela intensificação das abordagens e por apreensões carregadas de denúncias de truculência. A G8 é a mesma empresa responsável pela segurança da unidade da loja da rede Extra Morumbi que, no ano passado, teve um dos seus vigilantes flagrados em vídeo cometendo um ato de tortura contra um suspeito de tentar furtar carnes. 

“Se ele (segurança) tomar minha mercadoria e vier na educação, é uma coisa, é o serviço dele, eu vou entender. Mas tem uns que chegam na arrogância… (o segurança) te trata como lixo, quer te empurrar, bater, xingar… eu já tomei nome de puta, vagabunda, de um monte de coisa por causa de uma mercadoria”, contava a ambulante Kelly Caroline. 

Há quatro anos no comércio irregular, Thainá dos Santos, também aponta truculência na abordagem por parte dos seguranças que ficam à paisana nos trens. “Já sofri violência deles, eles me pegaram e me jogaram para fora da estação. Eu sei que a partir do momento que eles veem a mercadoria, eles apreendem. Tudo bem, é o trabalho deles. Agora, relar a mão em mim não é o trabalho deles, isso é abuso de autoridade”. 

No país onde a taxa de desemprego recua, mas devido ao avanço do trabalho informal, Kelly e Thainá integram o contingente de 38,4 milhões de pessoas, ou 41,1% da força de trabalho, segundo o IBGE, que faz crescer expressivamente a informalidade no mercado brasileiro. Como marreteiras, as duas se solidarizam, ao mesmo tempo que concorrem pelas vendas nos trens da Linha 11, onde conseguem por mês, quando não perdem muita mercadoria, fazer “mil e pouco (reais)”. 

“Correndo, entrando meio-dia, às vezes 14h, e indo embora no último trem, às 00h10, para minha casa na Cidade Tiradentes”, explicou Kelly. “Eu já trabalhei na Santa Casa, no Burger King, na limpeza, no Makro, em muito lugares, mas as vagas de emprego estão difíceis. Esses dias mesmo eu fui na entrevista, eram 30 vagas para 80 candidatos. Tá díficil.”

“Eu vendo bala, chocolate, água, tudo o que for honesto para ganhar dinheiro. Eu acho que não é errado. O comércio ambulante é errado, mas a gente quer um acordo”, acrescentava Thainá. 

No protesto desta quarta, os marreteiros buscavam dialogar com a equipe da estação Luz, tentando um acordo em que algumas estações fossem liberadas para a comercialização de suas mercadorias. “Estamos fazendo isso daqui. Se não resolver, tem quantas linhas? Linha 7, 8, 10, 11, 12… junta todos os marreteiros e vamos lá no (governador de São Paulo, João) Doria”, propunha Kelly. 

“Ninguém escolhe ser marreteiro, ninguém está aqui nessa opção porque gosta de ser marreteiro, mas porque cada um tem necessidade, cada um precisa do seu pão para sustentar a família e pagar seu aluguel. Não tem como eu ficar em casa sem fazer nada. E minha filha? E minhas contas? Elas não esperam”, afirmou Thainá.  “E eles (seguranças) ficam tratando a gente como marginal e isso não é certo”.

“Eles são todos policiais, né? Estão de farda, de revólver, de cassetete, com spray de pimenta, algema, eles têm autoridade para fazer o que quiserem, às vezes rola até abuso”, analisavaVitor Santos, que também é vendedor ambulante – “no português mais claro: marreteiro.” 

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Os vendedores ambulantes também apontaram diversas críticas à abordagem dos seguranças da CPTM

Sem autorização da administração ferroviária, jovens como Vitor, de 26 anos, se arriscam na informalidade ofertando os mesmos produtos que são encontrados nas lojas formais instaladas nas dependências das estações da CPTM e do Metrô. “Trabalho vendendo água, refrigerante, batata, pururuca, esse tipo de mercadoria que o público pede aqui.”

Já são dois anos sem carteira assinada, trabalhando de oito a 10 horas por dia, de domingo a domingo. Com essa jornada, Vitor afirma que sua remuneração é de cerca de R$ 2 mil mensais. Isso quando consegue driblar a segurança. “Dá para fazer um dinheiro, mesmo nós perdendo bastante, porque quanto mais perde, mais tem que trabalhar.”

Diferentemente de grande parte das histórias que levaram trabalhadores antes com suas carteiras devidamente registradas à informalidade pelo desemprego ou mesmo pela precarização do trabalho formal, Vitor conta que foi o preconceito que o forçou a recorrer ao comércio irregular na CPTM. “Eu tive um erro no passado (cumpriu pena) e hoje eu até consigo emprego, mas quando eles veem que eu tive esse erro, eles não me deixam ficar no serviço. Só que eu tenho que trabalhar, tenho que voltar com dinheiro para casa e levar coisas para minha família”, acrescentou, contando que desde domingo (2) é pai de uma menina. “Estamos (os ambulantes) na luta mesmo, sem registro, sem almoço, sem condução, sem nada, na raça.” 

Do lado de dentro dos vagões, o protesto ganhava aprovação de parte dos passageiros. “Eles querem trabalhar”, afirmavam alguns. Outra passageira, que se identificou apenas como Gorete e observava o ato de longe, concordou apenas parcialmente. “A gente vê que eles querem trabalhar, mas atrapalha os passageiros, tinha que ser do lado de fora do trem. Mas não concordo em tirar a mercadoria deles”.

O também passageiro Luiz, que gravava o ato com seu celular, questionou: “De onde vem essa mercadoria deles? Eu pago imposto. Se fosse formalizado, eles pagariam imposto. Ao contrário disso, está ilegal e não é certo”. A resposta é dada pelo ambulante Henrique: os vendedores propõem justamente a formalização da atividade. De acordo com ele, a ideia é que a administração ferroviária possa destinar alguns espaços para a as vendas. “Infelizmente, a gente vive do trem, parar não vai. Se eles querem acabar com os marreteiros, têm que nos ajudar”, afirmou. 

Em novembro do ano passado, a CPTM chegou a anunciar uma parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) para capacitar e organizar os vendedores ambulantes. Na época, o doutor em Sociologia do Consumo pela PUC-SP Fábio Mariano Borges, analisou, em entrevista ao portal UOL, como esse tipo de proposta reflete a atual situação do mercado de trabalho e o avanço da informalidade no país. “Se a gente lembrar que está na era da inteligência artificial, capacitar pessoas para vender em vagões de trem pode significar que o Brasil está perdendo o século 21”, declarou o especialista.

Em frente à linha 11, na plataforma com destino à estação Francisco Morato, o marreteiro identificado apenas como Caio representava essa contradição. Sem ter aderido ao protesto, Caio continuava suas vendas, oferecendo garrafas de água a R$ 2. Dividindo e disputando com os demais vendedores os melhores pontos, caminhava pelo vagões atento à fiscalização, mas sem muita preocupação. “Parece feira do mesmo jeito. O desemprego é muito.”

“Invasão”

Em nota à RBA, a CPTM classificou o protesto dos vendedores ambulantes como “invasão” e destacou que a “Companhia não se intimidará e continuará combatendo o comércio irregular em suas dependências”. Mas não respondeu quanto às denúncias de truculência por parte dos seguranças, especialmente os terceirizados. A reportagem também tentou contato com a empresa de segurança Comando G8, que não havia respondido até o fechamento desta reportagem.