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‘Por enquanto quero desapegar’, diz metalúrgico, depois de quase 33 anos na Ford

Paraíba, como é conhecido, entrou na fábrica em novembro de 1986. Saiu na última sexta-feira, 12 de julho. Produção pode acabar em outubro

Adonis Guerra/SMABC
Adonis Guerra/SMABC
Paraíba fala durante assembleia na Ford, em março. "Como diria um camarada meu, Deus não vai desamparar ninguém"

São Paulo – Em 1983, quando José Quixabeira de Anchieta, o Paraíba, chegou a São Paulo, vindo de Sousa, no sertão paraibano, a Ford estava lançando o Escort, modelo que causou impacto e veio na sequência de veículos como Del Rey e Pampa. A fábrica de São Bernardo, onde ele entraria três anos depois, já havia produzido modelos emblemáticos, como Rural, Maverick e especialmente o Corcel, que ganharia uma segunda versão. Depois de passar por um supermercado em São Caetano do Sul e por uma pequena indústria em Diadema, outras cidades do ABC paulista, Paraíba assinou ficha na Ford em 3 de novembro de 1986, uma segunda-feira, um dia de greve no transporte coletivo paulistano. Na última sexta-feira, 12 de julho, ele deu baixa do local onde esteve diariamente durante quase 33 dos seus 56 anos. Entrou como prensista e saiu como preparador de máquinas, na Estamparia. Aposentou-se há dois anos.

“Por enquanto quero desapegar”, diz o metalúrgico, ainda pensando no tempo vivido na fábrica que está prestes a fechar – ainda há uma negociação em andamento para venda do local. Em fevereiro, a direção da Ford anunciou o fim das atividades de sua fábrica mais antiga, que começou a funcionar, comprada da Willys, em 1967, quando Paraíba era apenas uma criança em Sousa, hoje uma cidade com 70 mil habitantes. “Eu gostava do que fazia, me envolvia com os problemas dos trabalhadores, a empresa, o sindicato”, diz ele, que integrava o comitê sindical. Com a desativação da unidade, parte dos funcionários já deixou a Ford. “Parecia um cemitério”, afirma o trabalhador, ao lembrar dos vazios da fábrica nos últimos tempos.

A despedida de Paraíba teve festa e presentes. Ele ganhou um relógio e uma camisa do São Paulo, seu time de coração. Teve um “cafezão”, como diz, e churrasco. Ficou emocionado, mas já sabia do desfecho diante da postura irredutível da empresa, que não mudou nem mesmo quando representantes dos metalúrgicos – incluindo Paraíba – foram até os Estados Unidos, em março, para conversar com a direção mundial da montadora. “Ali para mim estava claro. Fizemos muita negociação, muita luta, para achar caminhos para viabilizar a fábrica.”

Se a economia se mantivesse aquecida, talvez fosse possível. O operário observa que havia uma expectativa de que o Brasil chegasse a 5 milhões de veículos produzidos em 2020. Neste ano, não deve chegar a 3 milhões. Com sua fatia de mercado, a Ford poderia se manter. Mas havia ainda a “concorrência” da outra unidade da montadora, em Camaçari, na Bahia. “Disputar com uma fábrica com 30% de diferença no preço do produto fica difícil.” Durante anos, os metalúrgicos conversaram com a empresa para que outros modelos fossem produzidos em São Bernardo, além dos caminhões – produção que começou em 2001, com o fechamento da unidade do Ipiranga, na capital – e do New Fiesta, que ele considera um modelo “ultrapassado e caro”.

O apelido com que ficou conhecido foi inventado pelo própria Paraíba, remetendo à sua origem. “Os apelidos (na fábrica) eram terríveis”, conta, citando alguns, impublicáveis. “Eu me antecipei e eu mesmo coloquei.” A vida passou na Ford, a maioria dos amigos foi feita lá, onde o trabalhador passava a maior parte do dia: “Eu saía de casa às 5h45, voltava às 5 da tarde”. Às vezes, nos finais de semana, eles também se encontravam.

Tristeza e esperança

Hoje, o clima é de desalento, embora com alguma esperança de que a negociação com o grupo Caoa seja concluída e parte dos trabalhadores possa permanecer. Eram 11 mil em 1986, quando ele chegou, pouco mais de 4 mil neste ano, incluindo os terceirizados. “A tristeza já vem desde o dia 19 de fevereiro, quando a empresa anunciou o fechamento.” Dos que já saíram, parte era aposentada, outros viajaram e alguns, poucos, foram contratados pela Mercedes e pela GM. “Como diria um camarada meu lá: Deus não vai desamparar ninguém”, diz Paraíba.

A Ford deixou de produzir o New Fiesta em junho. Resta a produção de caminhões, mesmo assim em ritmo bem abaixo do normal. Paraíba lembra que nesta semana deverão ser fabricadas aproximadamente 300 unidades, uma quantidade que a fábrica daria conta em pouco mais de dois dias, em condições normais. Uma encomenda da Argentina e do Chile deverá garantir mais 700 caminhões nos próximos meses. Depois disso, só incerteza. A empresa pode parar de funcionar definitivamente em outubro.

A fábrica da Ford em São Bernardo contava com muita gente jovem, mas também muitos veteranos. Segundo Paraíba, em torno de 500 trabalhadores tinham mais de 25 anos de casa. Duzentos deles, mais de 30. Outros 150 estavam lá havia três anos e mais 150, havia cinco. Na média, em torno de 16 anos de serviço. Metade do tempo do preparador de máquinas, que por enquanto vai tentar “desapegar”. Esquecer será impossível. Ele se tranquiliza ao pensar nos filhos, dois rapazes, um com 29, analista formado em Administração e Engenharia, e outro perto dos 25, autônomo na área de tecnologia da informação.

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