Passado e presente

Nove de Julho, uma data para lembrar o movimento operário de São Paulo

Em homenagem a antigos sindicalistas, lembranças sobre a greve geral de 1917 em um momento de "brutal" ataque a direitos trabalhistas

Reprodução Facebook
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Historiador Del Roio fala no ato em homenagem a sindicalistas: 'Se a gente não ganha o passado, não conquista o futuro'

São Paulo – O cenário era o antigo Moinho Matarazzo, inaugurado em 1900 no bairro do Brás, região central paulistana conhecida pela intensa atividade fabril na primeira metade do século passado – e por movimentos trabalhistas. Dois personagens daquele período foram homenageados nesta terça-feira (9), Dia da Luta Operária, conforme a Lei municipal 16.634, de 2017, que se pretende consolidar no calendário da cidade, ao celebrar a greve geral de 1917, em uma espécie de contraponto à data oficial, que lembra os constitucionalistas de 1932.

Na terceira edição, as homenagens foram à tecelã Eunice Longo, 91 anos, primeira mulher eleita diretora do Sindicato dos Têxteis de São Paulo, e ao líder ferroviário Raphael Martinelli, que completará 95 anos em outubro e é um dos dois remanescentes do Comando Geral do Trabalhadores (CGT), formado em 1962 e dissolvido após o golpe de 1964 – o outro é Clodismidt Riani, que mora em Juiz de Fora. Em 30 de maio, morreu o comandante Paulo Mello Bastos, que também integrou a direção do CGT.   Ambos foram lembrados por Martinelli em sua fala.

Martinelli e Eunice receberam o troféu José Martinez, referência ao jovem sapateiro e militante anarquista morto pela Força Pública na greve de 1917, exatamente no Brás. O troféu foi concebido pelo artista plástico Enio Squeff e pelo fundidor Luciano Mendes. Também foi lembrado o ex-metalúrgico Lúcio Bellentani, que morreu em 19 de junho. Ele liderava uma associação de ex-funcionários da Volkswagen perseguidos durante a ditadura. O próprio Bellentani foi preso dentro da fábrica de São Bernardo por agentes da repressão, com cumplicidade da segurança da empresa, em 1972. Familiares receberam uma placa, assinada por todas as centrais sindicais (CGTB, CSB, CSP-Conlutas, CTB, CUT, Força, Intersindical – duas, Nova Central e UGT), autoras de representação ao Ministério Público contra a Volks, pela perseguição a militantes políticos, em caso investigado há anos e que pode ter desfecho em breve.

Preservação da memória

O evento lotou um antigo galpão da fábrica, construída com maquinário inglês, que encerrou as atividades nos anos 1970 e foi tombada em 1992. Recebe eventos esporadicamente. O autor do projeto que se tornou lei, vereador Antonio Donato (PT), lembra que a iniciativa surgiu justamente a partir de uma reflexão sobre como celebrar a greve deflagrada em 1917, que parou a cidade. “Desejo que esse 9 de Julho seja plenamente assumido por todas as centrais.” Além das 10 centrais, entidades ligadas à pesquisa e à preservação da memória apoiaram o ato . Homenageado em 2018 e autor de livros sobre o 1º de Maio e a greve geral, o historiador José Luiz del Roio afirmou que o evento preserva a memória do movimento operário, em uma data dedicada à “oligarquia escravista de 32”, como definiu. “Se a gente não ganha o passado, nós não conquistamos o futuro”, acrescentou.

Ele propôs a entrega de um prêmio especial em 2020 ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que também foi diversas vezes lembrado durante as duas horas de ato político. Trompetistas executaram três músicas: a Internacional Socialista, Bella Ciao, hino antifascista italiano, e o Lula lá.

Dirigente da CUT de São Paulo, João Batista Gomes, o Joãozinho, afirmou que a data precisa ser “abraçada” por todas as centrais e se torna ainda mais importante em um momento de “brutal” ataque aos direitos dos trabalhadores, mostrando ao pessoal que está na ativa hoje como tudo foi conquistado. “Temos que assumir essa data. O movimento sindical precisa ter a certeza de que tem gente que continua lutando. É Lula livre, não à reforma da Previdência e não sair das ruas.”

O presidente da CTB, Adilson Araújo, disse que o 9 de Julho “é um dia nosso, da luta operária, do povo brasileiro”, referindo-se à prisão de Lula como “política” e condição para implementação de “uma agenda ultraliberal” no país. “O Brasil caminha para o fundo do poço, não há perspectiva de retomada. (Foi) uma opção por liquidar o Brasil em vez de um projeto de nação.” Pela Força Sindical, a diretora Maria Euzilene Nogueira, a Leninha, reforçou: “A história dos trabalhadores somos nós que temos de escrever”.

O que vamos contar?

Pare a ex-sindicalista e ex-deputada Clara Ant, conselheira do Instituto Lula, esta é uma preocupação fundamental. “A gente tem que colocar na pauta a preservação da memória”, afirmou, lembrando de visita feita anos atrás a Chicago, nos Estados Unidos, onde se originou o 1º de Maio, a partir de uma reivindicação por uma jornada de oito horas diárias, em 1886. Ela citou ainda as greves iniciadas no Brasil na segunda metade dos anos 1970, depois da descoberta de manipulação de índices da inflação em 1973. E manifestou preocupação a respeito de como as próximas gerações tomarão conhecimento do que aconteceu no Brasil a partir do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, até a prisão de Lula, em 7 de abril de 2018.

“Todas essas questões de que falamos hoje não constavam dos livros de História”, observou o secretário-geral da Força, João Carlos Gonçalves, o Juruna, um dos responsáveis pelo Centro de Memória Sindical. E o ex-deputado Adriano Diogo, que coordenou a Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa de São Paulo, destacou a recente condenação, na Itália, de 24 envolvidos na Operação Condor, união de ditaduras sul-americanas para perseguir militantes de esquerda nos anos 1970. Nenhum dos condenados era brasileiro, lembrou. “A concepção da Operação Condor aconteceu no Brasil. Os militares brasileiros não foram julgados em nenhum momento (pelos crimes cometidos durante a ditadura). Mas nossos companheiros estão vivos na luta e na resistência.”

Viúva de Lúcio Bellentani, Maria se emocionou ao lembrar que a preocupação do companheiro era justamente alertar sobre o que aconteceu naquele período para que não se repetisse. Por isso, a frustração com o resultado da eleição de 2018. “A luta que ele tinha era essa, mostrar o passado. Torturaram ele, arrancaram os dentes dele, e o presidente que aí está apoia a tortura. Foi uma ditadura civil-militar”, disse, apresentando-se como uma “costureira do interior” que tomou consciência do que acontecia a partir do convivência seu marido. “Esse é um ambiente que eu aprendi a respeitar.”

Eunice destacou os vários movimentos em que atuou, não só trabalhistas, como em defesa da Petrobras e pela paz. “Participei bastante, não me arrependo de nada do que fiz.”