Fica, Ford

‘Todo mundo deu o sangue lá na fábrica, e agora?’, pergunta operário da Ford

Trabalhadores misturam esperança e ceticismo sobre a unidade de São Bernardo. 'Acordo várias vezes à noite', conta um deles. Representantes dos metalúrgicos reúnem-se com a direção mundial da empresa

Roberto Parizotti/CUT

Trabalhadores da Ford saíram em passeata pela Rua Marechal Deodoro, no centro de São Bernardo, até a Igreja Matriz

São Bernardo do Campo (SP) – Na expectativa da reunião de sindicalistas com a direção mundial da Ford, marcada para as 17h (no horário de Brasília) de hoje (7), nos Estados Unidos, trabalhadores da empresa, muitos com suas famílias, participaram de ato na região central de São Bernardo do Campo, no ABC paulista. Durante a passeata na manhã desta quinta, que terminou com ato ecumênico diante da Igreja Matriz, eles demonstraram esperança com o resultado da conversa, mas também sabem que a empresa pode não mudar de ideia quanto ao fechamento da fábrica, anunciado duas semanas atrás.

A passeata saiu pouco depois das 10h do Sindicato dos Metalúrgicos e chegou uma hora depois à Praça da Matriz, palco de várias assembleias da categoria nos anos 1980. Vários trabalhadores usavam uma camisa com a palavra “Fica”, no mesmo formato do logotipo da Ford. Militantes distribuíam folhetos aos comerciantes, demonstrando o impacto econômico e social de um possível fechamento da unidade – a Ford iniciou atividades no ABC em 1967. A fábrica tem hoje 4.330 funcionários, incluindo 1.500 terceirizados, e a estimativa é de que um fechamento atingiria até 30 mil trabalhadores.

Segundo os metalúrgicos, apenas em tributos ao município a perda seria de aproximadamente R$ 300 milhões ao ano. “Já está difícil vender…”, murmurou um vendedor de loja de colchões na Rua Marechal Deodoro, importante área comercial da cidade.

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Muitos metalúrgicos levaram suas famílias: preocupação com o futuro. Fábio (esquerda) estava com a mulher e com Gael, de apenas 1 ano

Já na Matriz, Fábio Silveira da Silva, 39 anos, protegia o filho Gael, de apenas 1, do sol forte, usando um “pirulito” – pequenos cartazes usados pelos trabalhadores na passeata. Ao lado da mulher, Mariane, auxiliar administrativa desempregada, ele disse ter aumentado as esperanças ao ver a recepção das pessoas no Aeroporto de Guarulhos, na terça-feira (5), quando os representantes dos metalúrgicos embarcaram para os Estados Unidos. “Achei que pudessem vaiar, mas aplaudiram, gritaram ‘Ford, fica’. Você fica com aquela esperança de reverter a decisão”, disse Fábio, há sete anos na empresa.

Ele contou já ter reduzido algumas despesas domésticos, principalmente com alimentos, por causa do filho pequeno, que precisa de suplementação de leite. “Você corta os gastos em casa para suprir a necessidade dele”, conta o metalúrgico, que mora de aluguel em São Bernardo.

Segundo Fábio, os sentimentos na fábrica são divididos. “Alguns acreditam, outros não. Mas a partir do momento que abre diálogo, fica aquela esperança”, afirma, lembrando que todos sentem dificuldade até para dormir. “Eu acordo várias vezes à noite. Tem companheiro que vê o filho pequeno e chora.”

“Estamos vendo a indústria automobilística mundial num processo de reestruturação”, observa o secretário-geral da IndustriALL (federação internacional dos trabalhadores na indústria), o brasileiro Valter Sanches, que participou da passeata. Ele citou os casos da Ford e da General Motors, que tem reduzido mão de obra, lembrando que no Brasil a GM, para continuar, “pôs a faca no pescoço dos trabalhadores”.

Impacto e emoção

“É preciso lembrar que o impacto do fechamento dessa fábrica (referindo-se à Ford) vai muito além dos trabalhadores e suas famílias”, afirmou Sanches, lembrando do impacto em toda a cadeia produtiva. “A empresa tem de repensar essa estratégia. Vamos mobilizar todas as nossas forças para estar junto os trabalhadores da Ford.” A IndustriALL tem representação em 140 países.

O ex-prefeito de São Bernardo e ex-ministro Luiz Marinho voltou a lembrar da crise de 1998/1999, quando a Ford anunciou 2.800 demissões no ABC, que foram parcialmente revertidas. “Hoje senti a mesma emoção. Peço a Deus que eles (metalúrgicos nos Estados Unidos) tragam uma boa notícia. Temos de estar preparados para boas e más notícias. Mas, acima de tudo, preparados para uma luta longa”, afirmou.

O deputado estadual Teonílio Barba, ex-funcionário da Ford, lembrou de diversos acordos de reestruturação firmados com a empresa, que revitalizaram a fábrica. “O prédio é antiga, mas a estrutura é moderna. Só não fechou pela responsabilidade deste sindicato.”

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Ato inter-religioso encerrou manifestação dos metalúrgicos, que mantêm esperança de que a Ford não feche a fábrica no ABC

Já perto do meio-dia, o ato na Matriz reuniu representantes católicos, do judaísmo, da umbanda e do candomblé, espíritas, evangélicos, muçulmanos. Todos com mensagem de apoio, fé e esperança aos trabalhadores. “Toda empresa deve ter responsabilidade social. Não se pode tomar uma decisão que prejudique a sociedade, que provoque desemprego, fome, desespero”, afirmou o pastor Ariovaldo Ramos, da Frente Evangélica pelo Estado de Direito. “Fica (no ABC), porque a Ford deve isso aos trabalhadores, a São Bernardo, ao estado de São Paulo.” O padre Joel Nery, da Diocese de Santo André, lembrou da histórico de luta dos trabalhadores da região. “Nenhuma maldade, nenhuma injustiça é mais forte do que o amor.”

Os trabalhadores começam a deixar a praça. Entre eles, Claudemir da Silva Souza, 41 anos, há 11 anos e dois meses na Ford. Ele foi à praça com amigos, com a mulher, Cristiane (“Minha guerreira”), desempregada, e as filhas Evelin, 12 anos, e Ester, de 1 ano e 7 meses – o mais velho é Caíque, de 21. Também demonstrava esperança, mas com os pés no chão. “Animar, sempre anima, porque nós temos uma representação forte. Mas a gente sabe que é difícil. A gente está esperançoso, mas não tem 100% de certeza. A cabeça fica a mil. Tenho três filhos, só eu trabalho em casa.” O operário lembra que foi o emprego na Ford que proporcionou muito do que ele tem hoje, mas acrescenta que isso se deu por meio de muito trabalho. “Todo mundo deu o sangue lá”, diz. “O que mais me preocupa, hoje, é o convênio médico.”

Claudemir que, nos últimos anos, os trabalhadores abriram mão de alguns benefícios “para que a fábrica ficasse”. A mudança na organização produtiva na unidade de São Bernardo, onde agora os operários atuam na produção tanto de veículos como de caminhões, também aumentou a carga de trabalho. Ele, que começou a trabalhar aos 13 anos, relata vários problemas com lesões por esforço repetitivo, além da preocupação com a “reforma” da Previdência pretendida pelo governo.

“Com essa reforma que vai vir, onde que eu vou parar, cheio de doença? Quem vai me dar emprego? Essa é a pergunta que eu queria fazer para o Congresso Nacional”, desabafa Claudemir, que nasceu em São Bernardo. Ele apressa o passo, porque começa a cair uma chuva forte.

Os metalúrgicos voltam a se reunir na próxima terça-feira (12), em assembleia na porta da fábrica, quando receberão os informes da reunião nos Estados Unidos. “Independente da notícia que vier, eles não nos verão derramando lágrima. O que eles vão ver é muita luta se a resposta não for adequada”, lembrou o presidente da Confederação Nacional dos Metalúrgicos da CUT (CNM-CUT), Paulo Cayres. “Este ato ecumênico que foi feito aqui é o Brasil que a gente quer, de paz, sem ódio. Não se pode naturalizar o fechamento de uma fábrica. Isso é um crime.”