Terra ‘sagrada’ e bancada ruralista: os obstáculos da PEC do Trabalho Escravo

Representantes do agronegócio têm 25% dos assentos na Câmara, onde esta semana será votada a proposta contra a escravidão; No país, ruralistas são 0,02% da população

A votação do Código Florestal, em abril, não deixou margem a dúvidas sobre a força dos ruralistas, capazes de impor derrotas ao governo (Foto: Leonardo Prado. Agência Câmara)

São Paulo – Que a terra é um instrumento sagrado para as elites brasileiras, ninguém desconhece. Que, para alguns, ela vale mais que um ser humano, as frequentes denúncias de exploração de mão de obra em condições análogas à escravidão não deixam mentir. Só em 2011 foram 2.628 pessoas resgatadas em operações por todo o país.

“A manutenção da prática do trabalho escravo é típica de uma sociedade que deixou a escravidão sem usar as práticas da época da escravidão”, diz Ariovaldo Umbelino, professor do Departamento de História e Geografia da Universidade de São Paulo (USP). “Apenas não se vende o escravo, mas a prática da exploração do trabalho continuou sendo executada.”

Onze anos depois de ser apresentada e oito anos após a votação em primeiro turno, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 438, que expropria e destina à reforma agrária as terras nas quais seja flagrado o trabalho escravo, está prestes a ser votada em segundo turno pela Câmara. Após muita pressão da sociedade civil, a disposição do governo Dilma Rousseff pode ser a chave para garantir uma votação postergada por uma correlação de forças desigual.

Nos cálculos do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), a bancada de representantes do agronegócio na Câmara tem 130 representantes em um total de 513. A julgar pela recente aprovação das mudanças no Código Florestal brasileiro, com 274 votos favoráveis à proposta ruralista, ou o número é maior que o estimado pelo Diap, ou se trata de uma bancada com amigos fiéis.

Levando em conta os números do Diap, os ruralistas são 25% da Câmara, ou um a cada quatro integrantes da Casa que deveria refletir a diversidade da população brasileira. De acordo com dados de Censo Agropecuário do IBGE, são 47 mil os latifundiários brasileiros, 0,02% da população. Para efeito de comparação, a bancada sindical conta com 62 assentos, ou 12% do total.

Classe trabalhadora

Reside aí a explicação para que a PEC tenha sido aprovada em primeiro turno em 2004 e, desde então, aguarde adormecida. O atual governo, há nove anos no Palácio do Planalto, agora parece encontrar o respaldo necessário para tirar da gaveta a proposta. Os discursos contrários durante a votação desta terça ou quarta-feira não guardam surpresa: serão puxados pelos cabeças da bancada ruralista e versarão sobre a subjetividade da caracterização do trabalho escravo e sobre a punição de uma classe trabalhadora, “locomotiva do Brasil”, disposta a enfrentar árduos desafios em prol da nação.

O deputado Valdir Colatto (PMDB-SC) subiu à tribuna em novembro de 2010 para se queixar de uma ação de fiscalização de trabalho escravo promovida em seu estado. “Acho que está na hora de começarmos a olhar para o Brasil real, que precisa do apoio do governo e desta Casa, que precisa de soluções para continuar produzindo em paz, para tornar menos dificultosa a situação daqueles que estão trabalhando”, afirmou, sempre lembrando que fala em nome de seus 14 irmãos que produzem em pequenas propriedades.

O próprio, porém, está no grupo dos 47 mil do IBGE: tem em seu nome duas propriedades em Vilhena, estado de Rondônia, somando um total de 2.063 hectares. Segundo declarou à Justiça Eleitoral em 2010, é dono de um patrimônio estimado em R$ 1,3 milhão. Colatto é deputado desde 1987. Na terceira passagem pela Casa, discursou contra o projeto de lei que tentava tipificar, ou seja, definir de que se trata o crime de trabalho escravo contemporâneo porque, segundo disse, provocaria desemprego no campo. “Esta lei permitirá que qualquer um diga ao juiz doTrabalho que estava sendo obrigado a trabalhar e a caminhar, por exemplo, quarenta, cinquenta quilômetros de distância para comprar alimentos. Com isso, estava sendo submetido a trabalho escravo.”

A mesma Brasília, 15 anos depois. O deputado Moreira Mendes (PSD-RO) é o atual presidente da Frente Parlamentar Agropecuária. Garante não se opor à PEC do Trabalho Escravo, mas faz ressalvas. “Não teria problema nenhum se tivéssemos uma lei que definisse claramente o que é o trabalho escravo. Porque trabalho escravo é uma coisa, escravidão é outra. Trabalho degradante e meliante são outras. E o excesso de trabalho é outra coisa ainda, que também não é escravo.”

Moreira Mendes não deixa claro o tamanho de suas terras na declaração de bens apresentada à Justiça Eleitoral, com um patrimônio estimado em R$ 1,5 milhão e ao menos duas fazendas – a Três Capelas e a Três Capelas II. Segundo o Atlas do Trabalho Escravo – lançado no último mês pela organização Amigos da Terra –, Rondônia, estado natal do parlamentar, é um dos principais centros de ocorrência da escravidão contemporânea, em especial nas divisas com o Amazonas e com o Mato Grosso, outro campeão de casos.

Durante as eleições de 2010, Mendes recebeu R$ 1,1 milhão em doações. Várias empresas do agronegócio, entre as quais a Cosan, gigante do setor de álcool e açúcar que em 2010 foi incluída pelo Ministério do Trabalho e Emprego na “lista suja” do trabalho escravo, a relação de propriedades nas quais foi flagrado o crime. Segundo o regimento interno da Câmara, “tratando-se de causa própria ou de assunto em que tenha interesse individual, deverá o deputado dar-se por impedido e fazer comunicação nesse sentido à Mesa, sendo seu voto considerado em branco”.

Mas, assim como ocorreu durante a votação do Código Florestal, Colatto e Mendes não se darão por impedidos de defender a rejeição da PEC 438. “É vergonha de uma classe produtiva que se acha o motor do Brasil, que impõe um ponto de vista atrasado e que corre o risco, inclusive, de prejudicar a economia brasileira em um mercado que é cada vez mais exigente”, diz Frei Xavier Plassat, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), fazendo referência à possibilidade de que nações desenvolvidas se valham do argumento de exploração de mão de obra para impor restrições à importação de produtos brasileiros.

Se aprovada, a PEC do Trabalho Escravo será o terceiro instrumento à disposição para cumprir o que está previsto na Constituição brasileira, promulgada em 1988. A função social da terra, presente no artigo 186 do documento, estabelece que a propriedade rural deva atender a critérios de aproveitamento racional adequado, utilização regular dos recursos naturais e observância das relações de trabalho. Até hoje, apenas dois itens estão regulamentados: o índice de produtividade agrícola e a produção de plantas psicotrópicas, como a maconha. Falta, portanto, definir os critérios para a aplicação de dois incisos: “observância das disposições que regulam as relações de trabalho” e “exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.

Em linhas gerais, a PEC mexe, a um mesmo tempo, com duas questões que provocam arrepio aos herdeiros do Brasil Colônia. De um lado, rompe com o caráter até então inviolável da terra. De outro, destina à reforma agrária. “Um dos déficits maiores no combate ao trabalho escravo no Brasil é a saída do ciclo vicioso, que é a vulnerabilidade, o aliciamento, a fuga e a libertação”, diz Frei Xavier, da CPT. Como reconheceram os dois planos nacionais para a erradicação do trabalho escravo, publicados em 2003 e em 2008 pelo governo Lula, é preciso acelerar a reforma agrária para garantir que menos gente esteja exposta aos aliciadores de mão de obra. Com terra e capacidade de produção, a leitura é de que o trabalhador rural terá condições de manter sua família, ignorando as propostas tentadoras de boa remuneração que resultam, muitas vezes, em escravidão por dívida.

Embora o trabalho escravo seja, hoje, uma questão de todos os estados, a maior parte dos problemas continua relacionada à expansão da fronteira agrícola nas regiões Norte e Centro-Oeste. São áreas nas quais o desmatamento chega antes do Estado, e para as quais um cidadão pobre e, no geral, de estados do Nordeste é presa fácil para o aliciamento. No ano passado, o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) assentou 22 mil famílias para fins de reforma agrária, o pior resultado desde o início da série histórica, em 1995. Foi pouco mais da metade do registrado em 2010 e um sexto do realizado em 2006, o melhor ano até hoje para a entrega de títulos às famílias sem-terra.

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