Vítima de acidente de trabalho é menos cidadão, diz o sociólogo português

Diferentemente de um acidente de trânsito, incidentes no trabalho mostram como o risco é historicamente desconsiderado quando ocorre entre os pobres

Boaventura de Sousa Santos analisa sofrimento de países do Sul (Foto: TV Brasil/Divulgação)

São Paulo – Pesquisa recente do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, em Portugal, concluiu que o trabalhador é visto como um corpo capitalista. Quando acidentado no trabalho, é reduzido a fragmentos de órgãos e por isso torna-se menos cidadão de seu país – o que não acontece em caso de acidente de trânsito, por exemplo.

Em palestra na Escola Nacional de Saúde Pública, no Rio de Janeiro, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que dirige o centro, afirmou que proporia uma teoria pós-colonial a partir de uma epistemologia do sul sobre as questões de saúde, direito e poder por meio de aspectos não tão familiares a esses assuntos: os acidentes de trabalho e o risco.

A expressão “epistemologias do Sul” é uma metáfora do sofrimento, da exclusão e do silenciamento de povos e culturas que, ao longo da história, foram dominados pelo capitalismo e colonialismo. Colonialismo, aliás, que imprimiu uma dinâmica histórica de dominação política e cultural submetendo à sua visão etnocêntrica o conhecimento do mundo, o sentido da vida e das práticas sociais.

Ele afirmou que as companhias de seguro e as empresas cooptaram o sistema e imprimiram uma lógica capitalista ao significado do corpo do trabalhador, tornando-o um sujeito vulnerável e com o corpo fragmentado. “O trabalhador se acidenta e são feitos cálculos de incapacidade. Ou seja, baseados na ‘perda da capacidade de ganho desses trabalhadores’. A sociedade coloca preço naquilo que não tem preço. Além disso, esse valor é desigual quando se leva em consideração a situação econômica dos sujeitos”.

A conversão do corpo em capital, segundo o palestrante, revela que, por trás do pensamento de igualdade dos cidadãos perante a lei, escondem-se desigualdades brutais. “Quando há algum tipo de acidente, sofremos danos materiais e morais. Ficamos tristes, perdemos amigos, familiares, ficamos angustiados. Se ocorre um acidente aéreo, por exemplo, podemos ser indenizados por danos morais. Na fábrica não. O trabalhador só tem direito às perdas patrimoniais, nunca as morais. Isso porque ele é um fator de produção e só interessa a capacidade de trabalho do seu braço, do dedo, da sua mão”, disse.

Risco para o Sul

Outro aspecto abordado por Boaventura é o risco. Aspecto que, segundo ele, é uma concessão colonial e abissal. Pensamento abissal é uma característica da modernidade ocidental, que consiste num sistema de distinções visíveis e invisíveis que dividem a realidade social em dois universos ontologicamente diferentes. Um dos lados da linha, correspondendo ao Norte imperial, colonial e neocolonial, e o outro que corresponde ao Sul colonizado, silenciado e oprimido.

“Essa linha é tão abissal que torna invisível tudo que acontece do lado de lá da linha. Este lado colonizado não tem realidade ou, se a tem, é em função dos interesses do Norte operacionalizados na apropriação e na violência”, explica. O que caracteriza este pensamento abissal é a impossibilidade de presença simultânea nos dois lados referidos.

Boaventura afirmou que é um erro considerar que o colonialismo terminou com a independência dos países. “O que é o racismo senão a presença do colonialismo em nossa sociedade?”, questionou. Em seguida, citou o sociólogo alemão Ulrich Beck, no livro sobre a sociedade de risco, em que afirma que a sociedade vive uma situação nova, pois o risco é absolutamente imprevisível e cego para as diferenças de classe, sexo e para as desigualdades, tratando-se, portanto, de um risco que não se pode colocar no seguro.

“Essa é a ilusão do pensamento abissal. O que Ulrich Beck pensa ser um risco para a sociedade de hoje sempre foi risco para as sociedades coloniais. Essas sociedades sempre viveram situações de riscos inseguráveis. O risco funciona para as ocorrências, não para as condições. Se tivermos um incêndio todos os dias, ninguém fará seguros”.

 

Em seguida, ao analisar o risco sob uma perspectiva pós-colonial, Boaventura reafirmou que o risco “é toda discrepância entre a capacidade de agir, num dado momento em uma certa escala, e a capacidade de prever a possibilidade de uma ocorrência em um outro momento, em uma outra escala”. Para isso, analisou seis discursos sobre o perigo das zonas coloniais – metáfora utilizada para se referir a algumas zonas da cidade e do campo que estão “do outro lado da linha” – para verificar as situações de risco.

O primeiro discurso, segundo ele, é o grande perigo da morbidade e mortalidade nas zonas tropicais. A tropicalidade seria uma metonímia (figura de linguagem que utiliza uma palavra ou termo no lugar de outro, que o lembra) de perigo e desastre, pois estão em condições perigosas permanentes. Nelas estariam as doenças tropicais, que passaram a ser estudadas para proteger os viajantes que se dirigem a esses locais. E não as vítimas que vivem no local. “Essa é uma primeira globalização. Primeiro são os viajantes que viajam, depois os vírus”.

O segundo discurso analisado foi o das zonas coloniais como zonas de desastres e perigos. De acordo com Boaventura, nelas há mais propensão aos desastres e menos preparo para lidar com eles. “A ideia da propensão ao desastre vem do pensamento abissal, que coloca a zona colonial como aquela em que não existe lei. Dessa forma, submetem pessoas a riscos para segurarem melhor a vida daqueles que estão ‘do lado de cá’ da linha. Temos os espaços de morte e sacrifícios, daqueles que vivem em lixões e empresas poluentes para a segurança daqueles que estão nos condomínios fechados. Há o sacrifício de uns para a felicidade de outros”.

O terceiro discurso coloca as zonas de risco como áreas de revolução, como zonas do comunismo, ameaçando o capitalismo. “Esse discurso perdeu força após a queda do Muro de Berlim, mas voltou a ganhar força com o neoliberalismo”, afirmou. O quarto se refere às drogas ilícitas. “As zonas coloniais são as das drogas ilegais, do narcotráfico. Aqui se estabelece o pensamento abissal, sem que a gente se dê conta, entre consumo e produção. Há uma regulação civilizada de um lado da linha e a luta contra o narcotráfico do outro”, explicou. O quinto discurso é o da fome e da desigualdade, e ele só teria resolução a partir de uma reforma judicial feita pelos países ricos. O último discurso é mais recente e trata do terrorismo. “As zonas coloniais favorecem o terrorismo de forma permanente”.

Superação

Para Boaventura, superar o pensamento abissal exige o reconhecimento de sua persistência para que se possa pensar e agir para além dele, em direção a ‘um pensamento pós-abissal’, que pense a partir do outro lado da linha, a partir de uma epistemologia do Sul e confrontando o monoculturalismo do Norte com uma ecologia de saberes. A ciência moderna precisa estabelecer relação com outros conhecimentos. Ter a consciência que não é a única forma de conhecimento possível. Uma espécie de contra-epistemologia, que nega a existência de uma epistemologia geral e se baseia no reconhecimento de uma pluralidade de conhecimentos que se cruzam entre si.

Ainda de acordo com o palestrante, lutar por uma justiça social global implica, afinal, uma luta pela justiça cognitiva global transformando a impossibilidade de co-presença em co-presença radical em que “as práticas e agentes de ambos os lados da linha são contemporâneos em termos igualitários”. Boaventura completou: “Num tempo em que se formulam perguntas fortes, não havendo para elas respostas fortes, a ecologia dos saberes constitui-se por meio de um questionamento forte para respostas incompletas. É por isso que é um conhecimento prudente permitindo a abertura de novos horizontes epistemológicos e o exercício da autorreflexividade. Concluindo que devemos avançar em direção a construção de uma sociedade solidária”.

Com informações da Agência Fiocruz

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