Entrevista: convenção da ONU vai abrir portas às pessoas com deficiência

Em entrevista à Rede Brasil Atual, o desembargador Ricardo Tadeu Marques da Fonseca, primeira pessoa com deficiência visual a exercer um cargo de juiz, conta quais foram suas dificuldades até chegar ao cargo e o que tem sido feito para melhorar a vida das pessoas com deficiência

Desembargador Ricardo Tadeu Marques da Fonseca (Foto: Divulgação)

O procurador do trabalho  Ricardo Tadeu Marques da Fonseca foi nomeado pelo presidente da República para exercer o cargo de desembargador do Tribunal Regional do Trabalho do Paraná. Ele é a primeira pessoa com deficiência visual a exercer um cargo de juiz. O desembargador concedeu uma entrevista exclusiva para a Rede Brasil Atual.

Como ocorreu sua deficiência?
Ricardo Tadeu Marques da Fonseca – Eu nasci com 6 meses de gestação e tive o que eles chamam de retinopatia da prematuridade, então eu tinha baixa visão até os 23 anos e depois dos 23 eu perdi totalmente a visão.

E como o senhor estudava?
Já tinha dificuldade de estudar por causa da baixa visão, eu tinha que estudar ouvindo o que as pessoas gravavam para mim. Um pouco antes de perder a visão comecei a ler com uma lente especial. Por um ano ou dois eu mesmo lia os livros. Depois, quando eu perdi totalmente a visão voltei a ter que ouvir gravações.

Qual a contribuição dos seus colegas e professores?
Os colegas gravavam os livros e documentos para mim e os professores permitiam que eu fizesse prova oral.

E na sua vida profissional, como funciona?
Na advocacia da República eu remunerava ledores, aqui no Ministério Público eles me concedem pessoas que trabalham comigo lendo os processos e escrevendo meus ditados. Eu ainda não estou familiarizado com os programas de computadores. Eu vou começar agora, já que os processos no tribunal estão se digitalizando. Então vale a pena investir nesses programas de voz que leem o que está na tela.

Qual sua opinião sobre as cotas em concursos públicos?
A ação afirmativa é uma medida que a sociedade adota temporariamente para corrigir uma injustiça notória. No Brasil, há uma sociedade que evidencia um débito social muito grande não só com negros, como também com pessoas de classe social mais humilde, com as mulheres e com as pessoas com deficiência. Eu acho que as ações afirmativas realizam um fundamento constitucional que está muito claro em suas defesas: a determinação de se conseguir no Brasil uma sociedade livre da indústria solidária. As ações afirmativas são constitucionais, elas reportam o direito da igualdade.

Como fiscalizar o cumprimento das cotas para pessoas com deficiência?
A gente tem trabalhado muito intensamente com termos de ajuste de conduta das empresas. Trabalhando dentro das empresas para profissionalizar as pessoas com deficiência, que tem um nível menor de escolaridade. A solução está sendo a adoção de contratos de profissionalização com ONGs e o Sistema S (Senai-Sesc-Sebrae etc).

E essas pessoas com deficiência que são contratadas só para o cumprimento das cotas e não tem função real nas empresas?
Isso é ilegal e deve ser denunciado ao Ministério Público sempre que ocorrer, porque é dever do empregador oferecer trabalho digno.

Como combater a discriminação às pessoas com deficiência?
O Brasil está caminhando fortemente para corrigir isso. Ano passado nós ratificamos a Convenção Internacional de Direitos da Pessoa com Deficiência da ONU e foi a primeira vez que o Brasil incorporou um Tratado Internacional com força de norma constitucional,  com base no parágrafo 3 do artigo 5 da Constituição. Isso está abrindo muitas portas para pessoas com deficiência, vai começar um processo de fortalecimento institucional.

Hoje, se um deficiente recebe o benefício da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS)  e conquista o primeiro emprego, ele perde o benefício. Muitos preferem não ser registrados e assim conservar o benefício. Qual sua opinião sobre essa questão?
A pessoa perde o benefício, mas há um decreto de 2007 (resolução 6214) que prevê a possibilidade de devolução do mesmo se o deficiente perder o emprego. Mas eu não acho essa resolução muito boa, se eu tivesse o benefício provavelmente não iria querer perdê-lo, eu iria trabalhar informalmente e acumular com alguma coisa, é o que normalmente acontece. E ai ele não vai cumprir cota.

Mas como resolver esse assunto?
Esse assunto vai ser resolvido quando se tratar a pessoa com deficiência da mesma forma que o reabilitado. Existe um benefício na previdência, que chama auxílio-acidente: quando uma pessoas sofre um acidente e perde a capacidade laboral mas se reabilita com alguma redução de capacidade laboral ou residual, ele recebe o salário e mais o auxílio-acidente. Eu acho que no caso das pessoas com deficiência deveria ser adotado o mesmo critério.  Deveria haver uma renda suplementar ao salário para cobrir os custos adicionais das pessoas com deficiência. Isso é o que eu tenho defendido.  Deveria mudar a lei e criar um benefício previdenciário de cobertura dessa contingência, do custo maior que a pessoas com deficiência tem para tudo na vida.

E a questão dos estudos para as pessoas com deficiência?
Essa é uma questão fundamental. Há uma convenção da ONU que se tornou norma da Constituição no Brasil através do decreto legislativo 186 de julho de 2008. Ela estabelece a ideia de escola inclusiva e que as pessoas com deficiência devem estudar em escolas comuns, isso é uma meta, que agora é constitucional.

Essa inclusão também leva diversidade para escolas e combate ao preconceito?
Nós temos que somar a capacidade que as escolas especiais acumularam há décadas com a escola comum. Não precisa acabar com a escola especial e sim elas trabalharem em parceria com as escolas comuns.