Aceita esse tíquete?
Denúncias de violação de direitos pela multinacional Sodexo causam movimento global
Publicado 10/06/2011 - 18h50
Diariamente 50 milhões de pessoas são atendidas por algum tipo de serviço fornecido pela Sodexo (Sodexho Alliance), multinacional francesa fundada em 1966. O grupo tem 380 mil funcionários e, no ano passado, faturou mais de € 15 bilhões. No Brasil, seu produto mais conhecido é um cartão de tíquete-refeição usado por alguns milhares de trabalhadores. Mas a empresa presta numerosos serviços em 80 países, como programas de alimentação em escolas e hospitais públicos, organização de sistemas carcerários, contratos privados com corporações para elaboração de planos de benefícios, gestão de planos de saúde, aposentadoria complementar e integração de benefícios – tem até contratos que chegam a dezenas de milhões de dólares com forças armadas, principalmente a americana, para a qual fornece refeições e suporte logístico.
A Sodexo ficou famosa entre os brasileiros em 2007 ao comprar o grupo de vales-alimentação VR, o maior do país, por R$ 1 bilhão (assumindo os mais de 300 mil contratos com estabelecimentos, e mais de 5 milhões de clientes). Nesses quatro anos, o conglomerado tem se mostrado cada vez mais disposto a investir nos mercados em crescimento dentro do Brasil, projeta expansões regionais além do eixo Sudoeste e a entrada no ramo de alimentação para o setor de saúde. Com 850 unidades operacionais e quase 17 mil funcionários, a Sodexo calcula um crescimento de 25% para este ano no país, onde já fatura mais de R$ 1 bilhão e cresce entre 15% e 20% ao ano.
Porém…
No final de abril, sindicatos de trabalhadores ligados às áreas de atuação da companhia se reuniram em São Paulo. Entre lideranças de seis dos países onde a Sodexo opera – Brasil, Estados Unidos, França, Colômbia, Marrocos e República Dominicana –, a empresa proporcionou um raro consenso global: horas extras não remuneradas, falta de estrutura e itens de segurança em locais de trabalho, contratações precárias que induzem a uma alta rotatividade, pressão psicológica para impedir a formação de organizações dos empregados. Enfim, segundo os sindicalistas, os abusos trabalhistas e aos direitos humanos são componentes comuns no cardápio da multinacional.
Nos Estados Unidos, membros da Seiu, sindicato nacional de trabalhadores da área de serviços, acusam a Sodexo de não proporcionar condições dignas de trabalho. Há casos em que os planos de saúde oferecidos custam ao trabalhador um quarto de seu ganho. Na França, Jean-Michel Dupire, da Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), relatou a falta de acompanhamento médico a funcionários que sofreram acidentes de trabalho. No país, tem-se buscado a solidariedade da população para a causa, principalmente no setor metalúrgico, que mantém grandes contratos com a gigante de serviços.
Presente há 18 anos na Colômbia, a Sodexo emprega 14 mil trabalhadores, dos quais apenas 1% é sindicalizado. O Sinaltrainal, sindicato nacional dos trabalhadores do sistema agroalimentício, ingressou na Justiça, exigindo que o governo garanta o cumprimento das leis trabalhistas e obrigue a corporação a negociar. A Colômbia, porém, é um dos países mais atrasados em termos de democracia nas relações de trabalho. São conhecidas as práticas de intimidação, agressão e até mortes e desaparecimentos de ativistas de movimentos sociais (a edição 30 da Revista do Brasil, www.redebrasilatual.com.br/revistas/30, traz reportagem sobre o tema, “A outra guerra da Colômbia”).
O cenário conta com a conivência de órgãos do governo e do Judiciário. O processo contra a Sodexo, apesar das evidências, arrasta-se e aguarda decisão em última instância no Tribunal Superior. Foi também apresentada denúncia à Organização Internacional do Trabalho (OIT) contra o Estado colombiano por omissão em fiscalizar. Edgar Paez, diretor de Relações Internacionais do Sinaltrainal, diz que a empresa exige testes de gravidez antes de contratar trabalhadoras, demite mulheres grávidas e reprime quem se aproxima do sindicato: “Há alguns meses demitiram 16 que haviam se associado”.
Se colar, colou
A representante norte-americana Autumn Weintraub, diretora da Seiu, afirma que os abusos não são casos isolados, mas política da companhia. Nos Estados Unidos, existem ações em andamento e julgadas contra a multinacional. A Procuradoria-Geral do Estado de Nova York condenou, no ano passado, a Sodexo a ressarcir o Estado em US$ 20 milhões, depois de comprovadas irregularidades em faturas de serviços prestados a 21 escolas. Os documentos omitiam valores de abatimentos obtidos em negociações com fornecedores de alimentos.
Em março, o subprocurador John Carroll, em discurso em Washington para a Associação de Nutrição Escolar americana, mencionou que esse tipo de prática tem influência na qualidade dos alimentos distribuídos nas instituições, uma vez que a companhia pode utilizar produtos mais baratos, e não necessariamente de qualidade. Carroll demonstrou preocupação com o fato de muitas crianças de seu país receberem apenas uma refeição por dia – justamente a providenciada pelas escolas, fornecidas por empresas como a Sodexo. Também declarou que a companhia foi solícita durante toda a investigação, e, após as punições, prestou esclarecimentos a muitos de seus clientes. “É justo dizer que outros membros dessa indústria têm cooperado com a investigação, mas antecipo que anunciaremos novas penalidades nos meses que virão.”
Para os sindicalistas, trata-se, no caso americano, de algo parecido com a tática do “se-colar-colou”. A empresa, uma vez questionada, repara o eventual deslize. Se o deslize não for identificado, porém, segue facilitando os meios de ampliar os lucros. E não é tão difícil “colar”.
Relatos como esse já mobilizaram pais de alunos e comunidades locais. A sindicalista Autumn Weintraub lembra, porém, que as manifestações contra as atitudes empresariais da Sodexo não são tarefa tranquila e já renderam prisões de ativistas também na dita maior democracia do mundo.
Em abril do ano passado, 12 pessoas foram detidas, entre elas o ator Danny Glover (leia entrevista à página 20), durante protesto na sede da empresa no estado de Maryland. Recentemente, em abril, sete estudantes foram presos na Universidade de Emory, em Atlanta, estado da Geórgia, em ato pelo fim dos contratos com a Sodexo. Em Nova Orleans, Louisiana, foram outros 21 alunos da Universidade de Tulane, pela mesma causa. Idem para 25 pessoas da Universidade de Washington, depois de ocupar a reitoria. A ocupação ocorreu após sete meses de conversas com representantes da instituição. A gota d’água foi a demissão de uma funcionária da Sodexo na República Dominicana, por “suspeita” de tentar se associar a seu sindicato.
Em nota encaminhada à Rede Brasil Atual, no final de abril, após reportagem sobre o encontro internacional de sindicalistas em São Paulo – na sede do Sindicato dos Bancários –, a Sodexo negou praticar abusos e afirmou que atua com seriedade e transparência na relação com os funcionários. “A Sodexo esclarece, também, que permanece firme com o propósito de assegurar aos seus colaboradores o direito de afiliação sindical. Infelizmente isso parece contrariar interesses de organizações como um dos sindicatos trabalhistas dos Estados Unidos (Seiu, Service Employees International Union), tentando indispor a Sodexo com a opinião pública, por meio de práticas condenáveis”, rebateu.
De acordo com a organização dos estudantes, há mobilizações com o mesmo teor por todo o país. A Comissão Nacional de Relações de Trabalho (NLRB) avaliou, no começo de maio, que há provas o bastante para que a Sodexo seja processada por infringir leis trabalhistas dos Estados Unidos e de cooptar autoridades a colaborar com seus métodos.
A conduta da multinacional francesa desencadeou uma articulação sindical internacional. No Brasil, o presidente da Confederação Nacional de Trabalhadores no Comércio e Serviços (Contracs-CUT), Romildo Miranda Garcez, considera que essa ação global pode ajudar a mapear as irregularidades da Sodexo e desencadear um movimento mais forte no mundo. “Essa companhia distribui comida em mau estado e contraria a legislação para enriquecer mais.”
A entidade brasileira encaminhou denúncias ao Ministério do Trabalho, uma vez que a Sodexo é também fornecedora de serviços ao Fundo de Amparo ao Trabalhador. Entre as denúncias levadas ao ministro Carlos Lupi, está um relatório produzido pelo Fórum TransAfrica, presidido pelo ator Danny Glover. No documento há acusações de que os funcionários nativos da Guiné têm de se alimentar em refeitório separado dos europeus. Lá, como na República Dominicana e no Marrocos, são notificados problemas de saúde e segurança e de perseguições contra quem se queixa. Na Colômbia, na Mina La Divisa, em La Jagua, trabalhadores acreditam que a Sodexo deliberadamente serviu comida estragada, resultando em mais de 60 casos de intoxicação.