Há 30 anos, Conclat foi a matriz de unidades e desencontros sindicais

Conferência na Praia Grande (SP) reuniu todas as correntes de pensamento entre os trabalhadores

“Participar ativamente…” em cartilha pró-CUT: divergências ideológicas ficaram insustentáveis nos anos seguintes (Foto: Fundo Beatriz Bargieri/Acervo CSBH-FPA)

São Paulo – Autênticos, comunistas, moderados, pelegos, radicais, revolucionários conservadores e outros fizeram, 30 anos atrás, o que até hoje é considerado o maior encontro sindical contemporâneo no Brasil. A importância foi histórica, considerando-se que o período de reorganização de forças aconteceu  ainda sob a ditadura. Mais de 5 mil delegados de mil entidades participaram em Praia Grande, litoral sul paulista, da 1ª Conferência Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat).

Foram três dias – de 21 a 23 de agosto de 1981 – de discussões que envolveram, pela primeira e única vez, todas as correntes de pensamento atuantes no sindicalismo. Ali foi aprovada a decisão de se criar uma central única, o que aconteceria apenas dois anos depois – com a formação da CUT –, quando as divergências impediram o discurso unitário.

Série reconta 30 anos de sindicalismo

A partir desta sexta-feira (19) até a próxima terça-feira (23), a Rede Brasil Atual publica uma série de reportagens sobre a Conclat e seus efeitos sobre o sindicalismo brasileiro. A história do movimento de trabalhadores ficou marcada pelo momento, seguido da criação de centrais sindicais, seu reconhecimento recente, durante o governo Lula.

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A ditadura terminaria apenas em 1985 – desde 1979, quem ocupava o Palácio do Planalto era João Figueiredo, o último dos generais-presidentes. Na época da Conclat, já havia sido aprovada a Lei da Anistia (1979), mas o país ainda convivia com ameaças de retrocesso feitas pela chamada linha dura do regime, explicitadas pelos atentados à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 1980, e no Riocentro, em 1981. E, claro, a arapongagem ainda corria solta.

Um agente do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de Santos (SP), vizinha à sede da conferência, por exemplo, classificou a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) de “um verdadeiro congresso de cúpula socialista-comunista”, onde “farto material de literatura de esquerda foi distribuído e vendido”. A menção é parte de relatório encontrado no Arquivo Público do Estado de São Paulo.

Naquele período, o movimento sindical se reorganizava e incomodava o poder de plantão. As greves de 1979 e 1980, particularmente na região do ABC, ganhavam o noticiário e se confundiam com os movimentos pela volta da democracia. Surgia uma geração que depois seria identificada com o “novo sindicalismo”, propondo mudanças estruturais e modernização nas relações do trabalho. Essa geração iria se chocar com dirigentes formados na estrutura oficial, getulista, e resistentes a mudanças.

Na política, com o fim do bipartidarismo imposto pelo regime, era tempo de recomposição. O PT havia sido criado em 1980. A sigla PTB era motivo de disputa entre Leonel Brizola e Ivete Vargas, que ganhou a parada – ao veterano político, coube o PDT. Os partidos comunistas se preparavam para sair da clandestinidade. Nas eleições que se realizariam em 1982 (para governos estaduais e municipais), o PMDB iria se afirmar como principal partido da oposição.

Empate técnico

Toda essa mobilização refletiu-se na Conclat, que reuniu todos os grupos políticos da época. Para Clara Ant, na época diretora do Sindicato dos Arquitetos de São Paulo, havia uma situação de “empate técnico” no encontro. “Era um equilíbrio delicadíssimo, a rigor, entre quem queria e não queria formar a CUT. A minha convicção é de que se a CUT não fosse criada, não ia ter nenhuma central”, afirma Clara, que hoje assessora o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Instituto Lula, antigo Instituto Cidadania.

Representante do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região e um dos coordenadores da conferência, Edson Barbeiro Campos destaca a importância da Conclat, após um período intenso de greve e manifestações no país, para uma mudança de postura do governo. “A organização intercategoria era proibida. Não podia fazer reuniões. Nas reuniões que fazíamos, tinha sempre alguém infiltrado”, lembra.

“Foi uma inflexão fantástica (referindo-se à Conclat). Acho que a quantidade de pessoas, a mobilização, foi fundamental para que o governo repensasse o processo de intervenção generalizada nos sindicatos. Se o movimento sindical tivesse se dividido para fazer duas conferências, teria sido muito mais fácil para a ditadura tomar providências”, acrescenta Campos, atualmente assessor da presidência da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).

Foi uma enorme demonstração de força, define. “Ninguém esperava, a imprensa, os partidos. Acho que boa parte da esquerda, mesmo a mais otimista, se surpreendeu com a mobilização.” Campos lembra que a Conclat abriu caminho para a criação de centrais e para ter um outro grau de relacionamento com os empresários e com os governos estaduais, porque se cristalizaram as principais tendências existentes dentro do movimento sindical.

Unidade

Dirigente do Sindicato dos Bancários de Porto Alegre – reconquistado após um processo de intervenção federal –, Olívio Dutra observa que a unidade prevalecia em torno de alguns temas. “Além da ditadura, havia a luta pela liberdade e autonomia sindical. Tínhamos unidade na luta contra a repressão, pela anistia. Mas na questão da pluralidade e da liberdade e autonomia sindical, nunca tivemos. Até no PT não existe um discurso muito articulado”, diz o ex-prefeito de Porto Alegre, ex-governador gaúcho e ex-ministro das Cidades.

Nesse movimento de rearticulação política entre os final dos anos 1970 e início dos 1980, foi realizado o Encontro Nacional dos Trabalhadores em Oposição à Estrutura Sindical (Entoes). No mesmo ano, surgiu a Articulação Nacional dos Movimentos Populares e Sindical (Anampos), juntando setores da igreja, meio acadêmico, trabalhadores e intelectuais, sob influência do PT. Em outro polo, atuava a Unidade Sindical, juntando dirigentes sindicais tradicionais e, principalmente, o PCB.

“O Brasil estava todo em uma efervescência, em consequência dos movimentos sociais e organizativos”, lembra Avelino Ganzer, então dirigente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém (PA). “A Igreja, principalmente a católica, fazia esse debate, com a Teologia da Libertação, a criação das pastorais.” Ganzer seria, em 1983, o primeiro vice-presidente da CUT.

Nesse caldo em ebulição, vinha todo um debate sobre a importância da reorganização da sociedade, o combate à desigualdade, miséria, violência, acrescenta o dirigente. “E o novo sindicalismo trazia princípios de base, classistas, de autonomia, liberdade e independência perante os partidos e ao Estado, uma questão que deve ser muito avaliada hoje.”

O senador Paulo Paim (PT-RS), ex-dirigente do Sindicato dos Metalúrgicos de Canoas, considera a Conclat uma “revolução pela via democrática” no país. “Foi praticamente o grito de liberdade dado no Brasil. Todos estávamos juntos, por um sindicalismo autêntico, rebelde, combativo, corajoso.”

 Pró-CUT

Entre as principais resoluções do encontro, algumas são conhecidas até hoje, como a redução da jornada máxima de trabalho para 40 horas semanais. Em 1988, a Constituinte aprovaria jornada de 44 horas, ante as 48 horas vigentes até então. Também foi aprovado um dia nacional de luta, para entrega de pauta de reivindicações ao governo. Mas a principal decisão foi mesmo a eleição de uma comissão nacional pró-CUT – responsável por organizar um congresso para, conforme se previa, aprovar a fundação da central em 1982, o que de fato só ocorreria um ano depois do prazo determinado.

A comissão eleita tinha 56 integrantes, 32 de sindicatos urbanos e 24 de rurais. Mas chegar a essa composição exigiu horas de reuniões, depois que o plenário se dividiu entre as duas chapas apresentadas. “A votação foi extremamente apertada. Não era possível dizer quem tinha ganhado”, lembra Edson Campos.

Havia receio de briga, que poderia ter consequências mais sérias considerando que eram milhares de delegados em um prédio em construção. Os líderes do encontro partiram, então, para uma reunião em um vestiário, segundo Edson, ou um banheiro, de acordo com Hugo Perez. E quebraram cabeça para formar chapa única. “Nós apresentamos o nome do Waldemar Rossi (da oposição metalúrgica em São Paulo), e eles vetaram”, conta Edson. “Aí, quando eles apresentaram o nome do Joaquinzão, ele também ficou de fora.”

Joaquim dos Santos Andrade, o Joaquinzão, comandou por mais de 20 anos o Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. A oposição tentou derrotá-lo várias vezes, e foi justamente em 1981, pouco antes da Conclat, que isso esteve mais perto de acontecer. Com três chapas no primeiro turno, a votação teve segundo escrutínio, com vitória apertada de Joaquinzão (22,7 mil votos) sobre Waldemar Rossi (20,2 mil), militante da Pastoral Operária – sua chapa levava o nome de Santo Dias, metalúrgico da oposição assassinado por um policial em 1979, durante uma greve.

Morto em 1997, Joaquinzão era visto para grande parte dos sindicalistas presentes como ao grande símbolo do sindicalismo conservador. O fato de, no início do golpe de 1964, ter sido nomeado interventor no Sindicato dos Metalúrgicos de Guarulhos, ajudou a formar a alcunha de “pelego” que doravante o acompanharia.

Para Hugo Perez, o ex-líder metalúrgico pode ter sido um bode expiatório. Ele acredita que o papel histórico de Joaquinzão deve ser revisto. “Já se procurava um pé de frango para fazer banquete. O que se procurava era marcar posição e delimitar terreno”, comentou.

Em entrevista dada em 1991, dez anos após a Conclat, Joaquinzão definiu o evento como uma “esgrima” entre aqueles que fundariam a CUT dois anos depois e o outro bloco do movimento sindical. “Eles achavam que unidade era dizer ‘amém’ à CUT”, afirmou.

“O que eles não queriam admitir era a possibilidade de o Lula obter a hegemonia do movimento sindical”, reage Jair Meneguelli, o primeiro presidente da CUT e hoje à frente do Conselho Nacional do Serviço Social da Indústria (Sesi). Também em 1981, Meneguelli sucedeu Luiz Inácio Lula da Silva no comando do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema (atual sindicato do ABC). Na posse, ganhou um abacaxi, para simbolizar a difícil missão que teria pela frente, em tempos de crise.

Entre debates e enfrentamentos políticos, sobrou um momento para o devaneio. Clara Ant ainda se emociona ao lembrar que, durante o encontro, chegou a notícia da morte do cineasta Glauber Rocha. Os delegados faziam um minuto de silêncio quando alguém gritou: “Os artistas precisam de aplauso!” Os murmúrios deram vez às palmas.

 

Foto original: Fundação Perseu Abramo