Argentina 2001: do presidente-relâmpago à eleição de Kirchner, um fim de ano agitado

Entre a queda de Fernando de la Rúa e a ascensão do novo presidente eleito, país teve trocas instantâneas de comandantes da Casa Rosada e descrença na classe política

Buenos Aires e São Paulo – Cinco presidentes em 12 dias. A Argentina de 2001-02 não era o palco da estabilidade. Após a queda de Fernando de la Rúa, em 20 de dezembro, foi a vez de o presidente do Senado, Federico Ramón Puerta, tentar a sorte. Bastaram dois dias para que se fosse. Convocaram o governador da província de San Luís, Adolfo Rodriguez Saá, mas a escolha logo se mostrou equivocada: parecia querer um governo de vários anos, e tudo que se precisava era levar o carro à linha de chegada. Eduardo Oscar Camaño, presidente da Câmara, foi o próximo da lista. E, por fim, o Legislativo aprovou o nome de Eduardo Duhalde, governador da província de Buenos Aires, que conduziu a Casa Rosada com alguns percalços até maio de 2003.

O período inferior a dois anos é pródigo em anedotas tragicômicas. Em uma delas, Rodriguez Saá, pouco depois de assumir, já se vê abandonado. Convoca uma reunião de caciques para a casa de veraneio presidencial, em Chapadmalal, na costa. Chega ao local tarde da noite, chove a cântaros, a residência está sem energia elétrica e sem funcionários. Sem poder chegar ao quarto, derrama-se, ao lado de assessores, em um sofá, onde passa uma desconfortável noite. Pela manhã, aguarda em vão pela chegada de alguns dos principais líderes do Partido Justicialista. É hora de sair.

O rodízio presidencial daquele momento refletia o descrédito da população com a classe política tradicional. Um novo presidente tomava uma medida considerada equivocada, a população ia às ruas promover um panelaço e era preciso selecionar um novo chefe de governo. As escolhas eram feitas de maneira papal e a sociedade não se via representada pelo novo ungido.

No começo de 2002, funcionavam em Buenos Aires 112 assembleias de bairro, e eram 272 em todo o país. “Não havia mandato, não havia forma de coordenar. Era um processo aberto. Havia forte descrédito em toda institucionalidade burguesa, uma coisa que foi se acumulando ao longo dos anos”, lembra Sergio Bertaccini, que hoje milita no grupo MTE Rebelde, uma das muitas organizações surgidas, fracionadas ou fundidas no começo da década.

Para ele, a chegada de Duhalde ao comando significou o refluxo dos movimentos populares. Fazendo uma autocrítica dos movimentos daquele momento, ele lamenta que se tenha chegado a disputas pelo comando das assembleias nascidas meses antes de maneira autônoma. Sem poder oferecer alternativas à democracia representativa convencional, essas organizações acabaram perdendo força rapidamente. Basicamente, faltava uma linha comum em torno da qual a população pudesse se unir.

Em maio de 2003, a população se apresenta a eleições pouco convencionais. O favorito é Carlos Saúl Menem, presidente responsável por conduzir o país àquela situação de pobreza e desemprego. Duhalde, capaz de polarizar a situação, quer apoiar Carlos Reutemann, governador da província de Santa Fé, mas este desiste.

O apoio dele passa a Néstor Kirchner, um político pouco conhecido da província de Santa Cruz, distante, pouco populosa, incapaz de pesar no cenário nacional.  Menem passa pelo primeiro turno, mas com 24% dos votos. Fica claro que o voto antimenemismo será massivo, em torno de 70%, e ele se retira da disputa. Néstor, segundo colocado, vai assumir a Casa Rosada. “Muito poucos acreditavam em Néstor. Aos poucos foram revertendo as coisas ruins, apoiando a política como acreditamos todos”, lembra Carlos Días, militante da Juventude Peronista.

Revisar o passado

A dívida externa a vencer até 2005 era de 130 bilhões de dólares. O Produto Interno Bruto (PIB), de 117 bilhões após o fim da paridade dólar-peso. O Fundo Monetário Internacional (FMI), que havia ditado todas as medidas tomadas na década anterior, e que havia previsto o horror no ano anterior, quando Duhalde eliminou a política de paridade, agora dizia à Argentina que o caminho era outro

“Pensamos que a combinação de uma economia de mercado com mais a atenção à equidade social é o formato correto para um futuro melhor. Isto está demonstrado agora no Brasil, através do presidente Lula. Creio que esta também poderia ser uma fórmula para a Argentina”, dizia o diretor-geral do FMI, Horst Köhler.

Kirchner decide apostar no caminho intermediário. Não rompe com o FMI, mas cobra a renegociação da dívida. “Questionava-se como a Argentina poderia se virar sem o Fundo. Havia-se chegado a pensar na época de De la Rúa a colocar um vice-rei econômico do Fundo”, lembra Felisa Miceli, naquele momento presidenta do Banco da Nação Argentina, a respeito da proposta de que a instituição supranacional enviasse uma espécie de interventor ao país.

“A Argentina queria pagar a dívida, desde que de forma compatível com um ritmo de crescimento econômico.” Ou seja, não se aceitava tomar o caminho agora imposto à Grécia, que terá de cortar direitos sociais e abrir mão da expansão do PIB durante alguns anos para resolver o problema de sua dívida. “Os técnicos do Fundo vêm com uma receita. Sabem menos de economia do que um estudante que acaba de começar a faculdade, mas repetem a receita a rigor”, alfineta Felisa.

Os oito anos seguintes são conhecidos. A dívida caiu a 46,3% do PIB, contra 166,4% em 2002. Os governos de Néstor e de Cristina mantiveram a política de crescimento econômico e acumulação de superávit fiscal para saldar os débitos. Para Sergio, uma derrota popular. “Se a esquerda se une no começo do kirchnerismo, era a hora de sair em cruzada com um projeto político”, lamenta.

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