Idosos do Jabaquara, em São Paulo, sofrem com desapropriações para construção de túnel

Elvira e Alberto, na sala da casa que construíram com as próprias mãos: presente difícil e futuro incerto (Foto: Jailton Garcia) São Paulo – O muro que separa a casa […]

Elvira e Alberto, na sala da casa que construíram com as próprias mãos: presente difícil e futuro incerto (Foto: Jailton Garcia)

São Paulo – O muro que separa a casa das vizinhas Laura e Elvira é o mesmo que as une. Laura, de 70 anos, sobe num banquinho para compartilhar com os amigos suas angústias, quase depressão, diante da desapropriação da casa que construiu há 40 anos com o marido, falecido há menos de um ano. “Me diz uma coisa: desapropriar mil e tantas casas para fazer um parque…? Não cabe na minha cabeça. A ‘sorte’ é que tomo antidepressivo e calmante”, afirmou a idosa. O sobrado da aposentada está entre as 1.500 residências que serão retiradas no Jardim Jabaquara, bairro da zona sul da capital paulista, para a construção de um parque e de um túnel.

Quando Laura, do alto do muro e de seus cabelos branquinhos, fala da iniciativa do prefeito Gilberto Kassab (PSD) de mudar o projeto original da Operação Urbana Consorciada Água Espraiada, acrescentando obras que aumentarão o número de desapropriações, os lábios tremem e a voz se exalta. “Se estou preocupada? Já estou querendo ir morar no cemitério.”

Do outro lado, a pequenina Elvira, de 73 anos, confessa à vizinha: “Hoje, um pedacinho a mais de meu mundo acabou de cair… Vieram fotografar a casa. Agora eu creio que a avenida vai passar. Então vamos esperar para ver”. Os moradores dos bairros que serão atingidos pelo prolongamento da avenida Roberto Marinho e pela construção de um parque linear começaram a receber, no final de março, técnicos de uma empresa terceirizada que realiza levantamentos de benfeitorias nas residências que vão dar lugar às obras.

De acordo com a prefeitura de São Paulo, cerca de 1.500 casas regulares da região serão desapropriadas e demolidas para as obras. No cálculo dos moradores serão 2 mil desapropriações. Cerca de 7 mil moradias de diversas comunidades da região também serão removidas. O conjunto de obras faz parte da Operação Urbana Consorciada Água Espraiada, de iniciativa da prefeitura de São Paulo, e prevê a interligação da avenida Roberto Marinho com a rodovia dos Imigrantes, acesso para a Baixada Santista.

“Esta é a obra mais cara de São Paulo e vai impactar 50 mil pessoas”, mensurou o integrante do Movimento Água Espraiada, Marcos Munarim. “Vai provocar uma das maiores desapropriações da história da capital paulista.” As remoções de moradores das comunidades também devem estar entre as maiores da história recente do município.

Acampados

Alberto Costa, um luso-brasileiro aposentado de 76 anos, é marido de Elvira. Ele e a esposa mudaram para a região em 1967 e depois de construir uma pequena edícula de dois cômodos, trabalharam todos os finais de semana, feriados e dias santos – faz questão de destacar –, durante três anos, para edificar a casa de dois quartos, sala ampla, cozinha e vários banheiros, além de garagem e muitas plantas nos corredores.

Mudança de planos

Moradores que participam do Movimento Água Espraiada defendem a interligação da avenida Roberto Marinho com a rodovia dos Imigrantes, mas, de acordo com o projeto inicial, previsto na Lei 13.260/2001, quando o conjunto de obras envolvia um túnel de 400 metros no final do curso do córrego Água Espraiada, com as novas pistas correndo ao lado do córrego.

Um parque linear de 130 mil metros seria criado contíguo à extensão da avenida e ao redor do córrego.
O projeto inicial foi alterado em 2009, e em 2011 o novo traçado foi aprovado pela Câmara Municipal de São Paulo. A nova concepção urbanística revoltou moradores e foi alvo de inúmeros protestos.

O projeto atual prevê o prolongamento da avenida Roberto Marinho até a rodovia dos Imigrantes via túnel de 2.350 metros, separado do parque de 600 mil metros. Cada uma dessas obras vai provocar um grande número de desapropriações.

O novo túnel será quase cinco vezes maior que o inicialmente previsto, quando a “obra fazia sentido e beneficiava cidade e moradores, em geral idosos”, disse Munarim.

O custo inicial do túnel, que segundo Munarim já passou por licitação em 2009, seria de R$ 1,6 bilhão. Mas os moradores já calculam que parque e túnel chegarão a R$ 4,5 bilhões com as atualizações nos valores dos serviços de construção nos últimos três anos, desde o processo licitatório.

Durante os três anos de construção da casa principal, Alberto, Elvira e os dois filhos ainda pequenos dormiram no quartinho do fundo. Ao lado, na cozinha, em uma “caminha de abre e fecha”, dormia a mãe de Alberto, que precisava levantar cedo para poderem usar o fogão.

Depois de 25 anos como vendedor e cobrador no Instituto do Açúcar e do Álcool, em que tirava pedidos de até “60 clientes num dia”, a aposentadoria tem sido vivida à base de remédios: 13 comprimidos diariamente para tratar de problemas no coração, ácido úrico e pressão alta.

A filha Lúcia decidiu há 6 anos morar próxima aos pais para acompanhá-los na velhice e também terá a casa desapropriada. O pior mesmo, diz Alberto, é saber que no futuro não poderá ficar perto do neto com quem convive atualmente. “Nunca mais teremos condição de ter uma casa como essa. Minha filha também não. A casa dela tem piscina, salas diversas, quartos amplos… e fica perto da gente”, expressou.

Alberto e Elvira são a favor da continuação da avenida. “É necessário”, disseram. Só julgam que a prefeitura tem outras opções. Prova disto seria o projeto lançado em 2001, para a mesma área, que previa 500, em vez das duas mil desapropriações que constam no projeto atual. “Com tanta gente debaixo da ponte, eu não entendo por que o prefeito quer retirar 2 mil famílias que vivem bem, em geral idosos como a gente, para fazer um parque.”

O casal passou semanas “acampado” com outros moradores no interior da Câmara Municipal de São Paulo, acompanhando diariamente a tramitação do projeto de lei (PL 25/2001) que deu vida ao novo conjunto de obras defendidas pelo prefeito para a região. “Dentro do Direito inverteram tudo. Foi muita injustiça”, analisou. “Eu achei que seria até preso por nossas manifestações na Câmara. Depois saí daquele lugar passando mal.”

Após o embate na Casa Legislativa da capital paulista, frente a frente com vereadores, Alberto gostaria de inquirir pessoalmente o prefeito. “Vê se tem condição nessa idade, 76 anos, cheio de problemas de saúde… sair da minha casa, ir para onde?”, disse, resignado. “Só se for para a casa do nosso amigo Kassab”, responde. “Se ele ficasse no meu lugar, o que faria com minha idade? Ele acharia bom, ficaria satisfeito?”

Mais desapropriações na família de Alberto

Alberto também ironiza – “Ele poderia ter uma dor de barriga para mudar de ideia” – e brinca com o trocadilho corrente na cidade: “Com esse prefeito a gente nunca sabe”.

Futuro incerto

Laura, que sofre de “diabetes descompensadíssima”,  contou que sua velhice virou uma sucessão de frustrações. “Fiz tudo para que tendo mais idade, tivesse um pouco de tranquilidade. Botei piso (cerâmico, no chão) para não dar trabalho, armários embutidos na cozinha e nos quartos, piso na cozinha de granito natural. Paredes da sala todas revestidas de mármore”, descreveu.

Todo o cuidado que mantém com a casa fica em risco diante da incerteza sobre o que vem pela frente. “Eu não queria casa maior nem menor, só quero essa aqui que está ótima para mim. Eu gosto demais da minha casa. Se eu tivesse um trator eu colocaria a casa em cima para levá-la para outro terreno, mas nem terrenos têm mais por aqui”, contou. “Quando a gente é jovem, tem pique para andar atrás de imóvel. A essa altura da vida, é muito difícil.”

Também viúva, Marília, de 75 anos, há 40 no bairro, receia pelo futuro da família diante das desapropriações que ocorrerão na área. “A aposentadoria vai tudo em remédios – R$ 495 este mês – mais o convênio médico. Não sobra quase nada para pensar em mudar ou pagar por outra casa”, contou. “Construir essa casa foi a maior luta da minha vida. Foi em uma época em que uma das minhas filhas estava doente e nós ainda pagávamos apartamento e condomínio de onde morávamos antes.”

Ela cuida da filha de 39 anos, que sofre com convulsão há 20 anos e sente-se “desconsiderada pela prefeitura da cidade”. Com placa divulgando os futuros túnel e parque e tentativas da prefeitura de fazer vistoria nas casas, ela analisa que o “sistema nervoso está a flor da pele”. “Dói demais essa história. Estamos sofrendo muito, é incalculável para quem está de fora”, disse. “É tocar no assunto e eu fico nervosa e começo a chorar.”

A dúvida de Marília sobre os dias à frente é a mesma de Alfredo: para onde ir? “Na zona norte estão mexendo. Agora a gente não tem segurança, não dá para saber em que locais o prefeito vai resolver intervir e até desapropriar a gente novamente.”

Para o aposentado Pedro Marquezine, de 82 anos, cuja casa também está na área de desapropriações, a tristeza mora no quintal. Além dos 52 anos no Jardim Jabaquara, a boa convivência com a vizinhança e as histórias vividas com a esposa e os três filhos, ele lamenta deixar para trás um quintal de frutas e flores que ele mesmo plantou. Primaveras, palmeiras, uma ameixeira e um pinheirinho, além de roseiras, são a paixão do idoso. “Há dois anos estamos batalhando com protestos, caminhadas e reuniões para evitar essa perda que todos nós teremos. Passar por isso aos 82 anos é algo que nunca imaginei e não desejo a ninguém.”

Colaborou Lauany Rosa