Desconfiança criada por Kassab atrapalha moradores de favela incendiada no centro

Ação movida pelo prefeito para instalar parque no lugar ocupado por moradores do Moinho, no centro de São Paulo, e falta de serviços públicos alimentam “pé atrás” com propostas

Alessandra Moja não explica se ficou descontente com a proposta de habitação oferecida pela prefeitura ou na lembrança que a atual administração que há seis anos entrou com uma ação judicial para remover moradores da favela (Foto: Danilo Ramos)

São Paulo – Desconfiança é um sentimento que não se instala do nada, mas cresce e diminui ao sabor dos ventos, oscila de acordo com os sinais. No caso dos moradores da favela do Moinho, no centro de São Paulo, a relação com a administração de Gilberto Kassab foi ganhando notas amargas ao longo de sete anos, e se agravou no último 22 de dezembro, quando a comunidade foi atingida por um incêndio que, segundo dados oficiais, matou duas pessoas e consumiu a moradia de 368 famílias.

Alessandra Moja expressa fúria no rosto quando ouve a pergunta sobre a proposta de habitação oferecida pelos representantes do prefeito paulistano. Pisca lentamente os olhos, eleva as pupilas e solta um suspiro. Ela só não explica se ficou irritada com a questão ou com a lembrança que ela evoca. “Você acredita em Papai Noel? Eu, não”, ironiza a vice-presidenta da associação de moradores, após um indigesto lapso de silêncio.

A desconfiança dos moradores do Moinho com relação a Kassab é a mesma nutrida por grande parte da população pobre de São Paulo, acrescida de temperos amargos. A atual administração ingressou há seis anos com uma ação judicial para remover os moradores. O objetivo é construir um parque. “Existe uma prática sistemática de privilegiar o mercado imobiliário, os interesses do capital especulativo”, critica Julia Moretti, advogada do Escritório Modelo Dom Paulo Evaristo Arns, da Pontífice Unirversidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que presta os serviços jurídicos do caso.

O terreno de 29 mil metros quadrados ocupado pelos moradores é alvo de um imbróglio. De posse da Rede Ferroviária Federal, desmontada no governo tucano de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), foi adquirido por particulares em um leilão por débitos tributários. Entrou na mira da prefeitura graças à Operação Urbana Lapa-Brás, uma das três que o prefeito pretende somar às quatro já em curso. São transformações profundas que, diz o prefeito, visam a melhorar a qualidade de vida e, dizem os críticos, visam a facilitar o lucro do mercado imobiliário em um contexto de crescimento econômico, crédito facilitado e aumento de renda. 

As operações são formuladas pela Secretaria de Desenvolvimento Urbano, à qual é vinculada a empresa pública São Paulo Urbanismo. Ambas foram criadas em 2009 com a intenção de promover grandes operações na maior cidade da América do Sul. No caso do eixo Lapa-Brás, planejam-se alterações radicais.

Os especialistas da prefeitura enxergam nas linhas férreas a responsabilidade pelo isolamento de bairros centrais e os diferentes níveis de desenvolvimento urbano. A remoção da ferrovia “irrigará” o Bom Retiro, onde está o Moinho, enlaçando-o em uma romântica “simbiose” com a vizinha Santa Cecília – bairro mais valorizado do ponto de vista imobiliário.

Neste sentido, vale desviar as linhas de trem, rebaixá-las e remover algumas estações que estejam a atrapalhar a fusão que fará com que “um bairro empreste ao outro suas principais qualidades”.

Especulação

A poucas quadras do Moinho fica a menina dos olhos da gestão Kassab. O projeto Nova Luz, também abrigado na Secretaria de Desenvolvimento Urbano, mexe no espaço do centro taxado de “cracolândia”, que o prefeito pretende mudar de maneira radical. O receio dos moradores é de que o projeto almeje simplesmente favorecer às construtoras, que ganharão uma área no centro da cidade para explorar, valorizar e vender.

“Entraram em um processo de gentrificação, de favorecer o mercado imobiliário em detrimento de organizar um serviço de atendimento aos usuários de droga, aos profissionais do sexo”, diz o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP), líder do PT na Câmara. O parlamentar é fortemente associado a movimentos de moradia desde que ocupou a Secretaria de Habitação municipal, até 2002, na gestão da prefeita Marta Suplicy.

Os moradores usam todas as forças para permanecer. Os proprietários do terreno onde está o Moinho apresentaram a Kassab uma proposta que consideravam honrosa: cediam o terreno ao município desde que fosse garantida a permanência da comunidade. O prefeito rejeitou. “A prefeitura nunca teve interesse em fazer a regularização dos moradores”, acusa Julia Moretti. “É simplesmente limpar a área para o mercado imobiliário, tirar da frente a população pobre.”

Investimentos e prioridades

A favela do Moinho continua existindo graças a uma liminar concedida em 2008 a uma ação apresentada pelo Escritório Modelo. Os moradores podem permanecer no terreno até que seja julgado o mérito do processo por usucapião, dispositivo constitucional que garante o direito de propriedade a quem ocupe uma área pública ou privada sem pedidos de reintegração de posse há pelo menos cinco anos. O incêndio de dezembro, porém, aumentou o temor de que a atual administração, ancorada no argumento da insegurança da área, consiga uma decisão que reverta a vitória parcial.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) cadastrou 532 domicílios naquele terreno durante o Censo de 2010. Os 1.656 residentes, dos quais 819 mulheres e 837 homens, foram incluídos em um estudo divulgado em dezembro passado sobre “agrupamentos subnormais”, ou seja, favelas e cortiços. O instituto não qualificou as comunidades, mas, se o tivesse feito, o Moinho não figuraria em nível muito animador.

A comunidade é invisível até para os atentos à paisagem urbana. A única entrada de veículos é por uma viela improvisada pela qual se acessa após a primeira das duas linhas de trem que limitam o local. Superada a ferrovia urbana, que a cada poucos minutos fecha a comunicação entre a população e o mundo, surgem ruas arenosas e banhadas por esgoto – tudo isso a dois quilômetros da sede da administração da cidade mais endinheirada do país.

A água chegou há pouco mais de dois anos à custa de muita luta e de investimentos dos próprios cidadãos, já que Kassab e o governo estadual não se interessaram em prover abastecimento. Antes era preciso recorrer a torneiras disponíveis em um galpão próximo para lavar roupa, cozinhar e tomar banho.

A eletricidade é senhora de uma aflitiva situação. “Gato” é um nome muito sofisticado para as ligações clandestinas ali existentes. Fios de cobre de diferentes espessuras passam por todos os lados, até acabarem pregados aos tetos das casas apertadas, sempre roçando a cabeça. Tijolo é item de luxo. As moradias empilham-se com madeirite e papelão, têm um espaço ínfimo e passam perto da inexistência as condições de saneamento.

Por tudo isso, os moradores não ficaram felizes quando souberam, pela televisão, que o prefeito injetara R$ 3,5 milhões na implosão do prédio que fazia parte da comunidade. A operação, promovida em 1º de janeiro, foi contratada sob emergência pelo poder municipal sob a alegação de que a estrutura, abalada pelo incêndio, ameaçava cair sobre os trilhos das duas linhas de trens, interrompendo em definitivo o serviço. Após a implosão, cinco dos seis andares permaneceram em pé. “Em Santos gastaram R$ 200 mil e a queima de fogos durou 15 minutos. Aqui não foi nem um minuto”, ironiza o aposentado Eugênio Garcia. “É mais interessante um parque ou um teto para as pessoas?”

O Ministério Público Estadual também desconfiou da operação, e decidiu abrir um inquérito na última terça-feira (10) para apurar a contratação das responsáveis, além de apurar como está a relação entre a prefeitura e os moradores do Moinho. O promotor Maurício Ribeiro Lopes quer saber quantas pessoas foram cadastradas após o incêndio e qual o tratamento dispensado a cada uma delas.

“Não é bonito, mas é meu”

O entrelaçamento de barracos no Moinho avança por baixo do viaduto, aproxima-se mais da ferrovia, onde diminui a luz e aumenta a umidade. Ali mora Joaniza Pereira, empregada doméstica, que não tem pretensão de aceitar auxílio-aluguel. O motivo é simples: uma amiga de outra comunidade entrou no programa de assistência da prefeitura, mas logo deixou de receber o direito prometido, e ficou sem casa e sem dinheiro. “Aqui é meu cantinho sossegado. Tudo bem que não é bonito, é debaixo do viaduto, mas é o que dá para fazer”, aponta. 

Inicialmente, a prefeitura disse que ofereceria aos afetados pelo incêndio quatro parcelas de auxílio, somando R$ 1.200. Os integrantes da associação de moradores foram impedidos de entrar nos albergues, onde há mais de cem atingidos pelo incêndio. “Essa situação de gestão dessa crise poderia ter sido diferente se tivessem reconhecido desde o primeiro momento os atores que aí estão, que são os moradores”, observa Paulo Teixeira.

Na última semana, com a presença de advogados, da Defensoria Pública e do deputado, a prefeitura resolveu fazer uma nova proposta. Aceita pagar R$ 450 por família como ajuda para aluguel até que esteja pronto um conjunto da Vila dos Remédios, na zona oeste, para onde os atingidos pelo incêndio seriam transferidos temporariamente, até que seja erguido um novo edifício na região central.

Além de resolver questões como os gastos-extra criados pela regularização de serviços públicos, falta definir um prazo para a entrega da solução final. “Precisa ter um objetivo. Precisa ter clareza. Qual a proposta, quanto tempo vai levar, de onde vem o dinheiro, como vai ser construído”, enumera o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo de Rua. 

Os moradores, que não metem a mão em qualquer botija, resistem a aceitar uma proposta que não tenha todos os pingos nos is. “Qual interesse que a prefeitura tem em montar um parque? A prefeitura tinha de fazer casa para a gente. O principal para nós é um canto digno. Que se tenha um pouco de compaixão”, cobra o assistente de limpeza Edson José da Silva Saldanha. “A vida aqui não é para um ser humano. Um animal vive melhor que a gente.”

 

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