‘O Jardim Helena é um lugar esquecido’

Dois meses depois da primeira enchente, bairros do Distrito do Jardim Helena ainda convivem com água dentro das casas. Nas ruas, lama, esgoto, cobras e larvas amedrontam os moradores

Moradora guarda cobra encontrada depois de enchente (Foto: Suzana Vier/RBA)

São Paulo – Zélia guarda em um vidro a cobra encontrada na enchente. Uma outra picou Francisca na porta de sua casa. Marineuza perdeu móveis várias vezes, desde a primeira enchente em sua rua, no dia 8 de dezembro do ano passado. Com medo de novas inundações, Sabrina vive com todos os móveis da casa suspensos, inclusive o berço do bebê de um ano e três meses.

Antonio Wellington perdeu tudo que estava dentro de sua casa. A cozinha de Maria Altemira está cedendo. Eliana chora ao lado dos móveis perdidos. Tânia deixou a parte térrea da casa, porque água e esgoto infiltram através do piso.

Muitos moradores, tentando recomeçar a vida, empilham na porta das casas sofás, poltronas, armários e eletrodomésticos perdidos em diversas enchentes que atingem a Chácara Três Meninas – zona leste da capital paulista – há dois meses.

Nesta segunda-feira (8) faz dois meses que Marineuza Gonçalves não consegue voltar para casa. Na quinta-feira (4), quando a reportagem da Rede Brasil Atual esteve no bairro, ela limpava mais uma vez a residência, na tentativa de retornar à vida normal.

Desde 8 de dezembro do ano passado, ela, dois filhos pequenos e o marido deixaram a casa, com todos os móveis imersos em mais de um metro de água, lama e sujeira. Fogão, cama, geladeira, até mesmo alimentos foram atingidos pelas águas que se misturam com esgoto e causam extremo mau cheiro.

“Vim lavar o fogão e ver o que salva. Ver se dá para dormir na parte de cima”, conta. Apesar dos constantes alagamentos, a família não pensa em sair do bairro. “O bolsa-aluguel [solução proposta pelo prefeito Gilberto Kassab (DEM)] não quero. Meu marido tem medo de daqui a seis meses a prefeitura não pagar mais e a gente passar a ter de pagar pra morar”, avalia.

Enchente

Segundo a moradora, em dez anos na Chácara Três Meninas, nunca antes a família havia sofrido com enchentes. “Nem no quintal entrava água”, aponta para o terreno, há dois meses constantemente alagado. Desde a primeira chuva, Marineuza já chegou a comprar alguns itens que a chuva destruiu, mas já perdeu novamente. “Na primeira enchente, eu perdi a cama que ainda ‘tava’ pagando. Aí, eu comprei essa segunda [cama] que é antiga e bem resistente, mas já entrou água de novo”, lamenta.

Das muitas enchentes que assombram o bairro desde dezembro, ela lembra principalmente de uma madrugada em que acordou assustada com água alcançando o sofá onde o filho dormia. Para atravessar o pântano em que se transformou o quintal, a família improvisa uma passagem de madeira para ter acesso à casa.

Ao lado, morava a irmã de Marineuza. A casa ainda tem vários centímetros de água e lama. Quadros ainda estão nas paredes, que mostram marcas de mais de um metro de água. As estantes tem muitos objetos, como livros e documentos, molhados. Na cozinha, panelas ficaram em cima da mesa. A casa, de paredes amarelas e aparentemente bem decorada, por enquanto só abriga água parada e larvas.

Enquanto a casa de Marineuza permanece alagada, a família mora com vizinhos e familiares. “Eu fico na casa de um, na casa de outro. Agora o vizinho vai voltar, preciso deixar a casa dele livre”, conta.

Surpresa

Improviso

Zélia Andrade descansava na tarde do dia 23 de janeiro, um sábado, quando acordou e deparou-se com a água subindo. Gritou para os vizinhos ajudarem a levantar os móveis e retirar as roupas do guarda-roupa novo. Duas semanas depois, ela ainda tenta secar documentos na janela.

Desde então, não pode mais usar o banheiro da casa, porque o esgoto retorna pelo vaso sanitário e ralos. “Todo dia eu preciso ir à casa de uma amiga para tomar banho”. Ao lado da cama, na estante, ela mantém a cobra encontrada na enchente de 25 de janeiro e, no aquário, o peixe que veio com as águas. “Vamos virar anfíbio, ‘tamos’ vivendo na água”, brinca.

Vida precária

Sabrina Melo vive há dois meses com os móveis suspensos. Depois da primeira inundação da casa, a família usa tijolos, pedaços de madeira, bancos e cadeiras para manter os móveis longe do chão. “Depois [da enchente], a gente foi só subindo as coisas. Tivemos muita coisa perdida”.

Para Maria das Dores de Araujo Melo (Dora), “nosso bairro, o Jardim Helena, é totalmente esquecido de tudo”. A moradora critica a ausência do poder público nas regiões alagadas. “Do dia da enchente até hoje, não veio ninguém. As únicas pessoas que vieram foram para fazer cadastro”. Dora abriga a nora, a mãe, o filho e netos na parte de cima da casa. 

Segundo Dora, o neto ficou doente, mas a demora de atendimento hospitalar levou a família a medicar a criança em uma farmácia. “Ele tava obrando [evacuando] e vomitando. Compramos soro numa farmácia”, confessa. “Não colocaram estrutura de saúde. Pra pegar cloro tem de andar quatro quilômetros até o Jardim Pantanal”, reclama.

Ela conta que se surpreendeu com as enchentes. “Eu morava no centro de São Miguel (Paulista, também na zona leste da capital) e ‘dava’ enchente. Construí aqui há 15 anos e nunca tinha ‘dado’ [inundação]”, diz.

Tristeza

Precariedade

 

Eliane Rocha chora enquanto mostra sua casa à reportagem.  Ela conta que estava viajando e ao retornar depois do feriado de aniversário de São Paulo (25/01) encontrou a casa alagada. “A água passou pela janela”, calcula.

Os móveis, ela empilha um a um na calçada, lembrando quando comprou e quanto tempo demorou para pagar cada um deles. Dentro da casa, os filhos de nove e 14 anos ajudam a mãe a tirar água com o balde. Para chegar à cozinha, a família passa por cima de uma tábua e de uma cadeira. No quintal e na entrada da residência, larvas e mosquitos proliferam-se. E, apesar disso, todos andam de chinelo. “No início, a gente até tenta se cuidar e evitar essa água, mas não tem jeito”, explica Eliana.

Apesar do sol

Enquanto a chuva da quinta-feira (4) inundou diversos bairros de São Paulo, na Chácara Três Meninas, apesar das precipitações fortes, o nível do rio Tietê não subiu, nem inundou casas. A reportagem estava no bairro durante a chuva e depois visitou a várzea do rio. Sem verificar mudanças, nem enchentes. Consultando moradores, após as chuvas, eles confirmaram que não houve enchentes.

Entretanto, pela manhã da sexta-feira (5), Dora disse que apesar do sol quente, as casas voltaram a encher de água e esgoto. Segundo os moradores, duas ações estariam causando enchentes sucessivas desde 8 de dezembro. Uma delas seria o fechamento da barragem da Penha e abertura das barragens acima do rio. Para Maria Altemira, “eles ‘tão’ soltando água lá em cima”, em referência à abertura de barragens acima da Penha.

A outra responsável, suspeitam, é a construção do centro de distribuição de uma indústria alimentícia na várzea do Tietê, próxima à região. “Dá para ver a terra vermelha quando o rio ‘tá’ baixo”, descreve. “Eles (a empresa) aterraram, se for do outro lado vocês notam”, cita Dora. “Derrubou tudo que é árvore. A gente ligou, mas não veio nenhuma Defesa Civil, nenhum ‘Meio-ambiente’, nada”, denuncia.

A moradora critica a discriminação do governo, que tenta remover moradores, mas deixa uma empresa se instalar na margem do rio. “Nós moramos na mesma margem do rio. Do lado de cá é APA (Área de Proteção Ambiental), do outro lado já não é APA.”

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