Um ano depois, operação na cracolândia em SP coleciona críticas e ilegalidades

Movimentos e organizações de diretos humanos criticam violência e autoritarismo dos aparelhos do estado diante de um problema de saúde pública

Operação Centro Legal “detonou todo o trabalho” assistencial que entidades, ongs e centros de atendimento mantinham na região (Foto: Danilo Verpa/Folhapress)

São Paulo – Quem trabalha diretamente com moradores de rua, direitos humanos ou redução de danos sente urticárias ao ouvir que a Operação Centro Legal, também conhecida como Operação Sufoco, é um sucesso. Deflagrada há exatamente um ano pelos governos Geraldo Alckmin (PSDB) e Gilberto Kassab (PSD), com apoio tático da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana, a ação tem como objetivos autodeclarados resgatar a cidadania e elevar a dignidade dos usuários de drogas que se concentravam – e ainda se concentram – numa região de São Paulo conhecida como cracolândia, localizada no bairro da Luz, centro da cidade. O plano também previa recuperar áreas degradadas e combater o tráfico nas redondezas. “Mas foi uma barbárie o que a gente viu lá”, contrapõe Átila Pinheiro, coordenador do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) na capital. “Havia muito mais aparato policial do que qualquer outra coisa.”

Um ano depois, a maior queixa é contra o uso de força bruta para solucionar militarmente um problema com características muito mais ligadas à assistência social e à saúde do que à segurança pública. “Diversos serviços já trabalhavam com aquela população no sentido de criar vínculos e pensar juntos soluções à dependência”, alerta Thiago Calil, psicólogo da ong É de Lei, que há 14 anos trabalha com redução de danos em São Paulo. “Por isso, entendemos que a ação que agora completa um ano teve um caráter exclusivamente repressivo.”

Nenhuma instância do poder público envolvida com a Operação Centro Legal atendeu a reportagem: nem a Secretaria de Estado da Justiça, nem a PM, nem a assessoria de imprensa do Palácio dos Bandeirantes, nem a GCM, nem a Secretaria municipal de Saúde (estas duas últimas ainda na gestão Kassab). As únicas informações oficiais estão na página da Polícia Militar na internet, cuja última atualização é de 17 de novembro.

Até aquela data, segundo o boletim divulgado, os policiais apreenderam 74,6 quilos de drogas. O crack, substância que empresta sua má fama ao bairro, respondeu pela menor parcela: 11,9 quilos, pouco mais de 16% do total. Ao montante, deve-se somar ainda as 511 pedras encontradas pelos guardas municipais. 

“Se o grande discurso é o combate ao crack, é uma quantidade irrisória para o grande número de pessoas que fazem uso de drogas na região”, interpreta Daniela Skromov, coordenadora-auxiliar do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. “Então, das duas, uma: ou o combate ao crack é um discurso falso e há outros interesses por detrás; ou a operação não é um sucesso, como eles dizem.”

Daniela foi uma dos cerca de 15 defensores públicos que resolveram deixar os escritórios da instituição, na rua Boa Vista, e se deslocar alguns quarteirões para conferir in loco o que estava acontecendo na cracolândia após o início da Operação Centro Legal, no dia 3 de janeiro. Chegando na região que concentra alguns dos principais museus da cidade e a maior sala de concertos do continente, o grupo se deparou com uma série de violações não apenas aos direitos humanos, mas também aos direitos civis mais elementares. 

“Colhemos várias denúncias de ofensas verbais – o que era completamente comum –, espancamento, atentado à integridade física, uso abusivo de spray pimenta, lesões por tiros de borracha”, lista a defensora. “Ficou claro que na cracolândia não existiu combate às drogas que não fosse combate às pessoas que usam drogas. Houve custos humanos inadmissíveis.”

Diante das ilegalidades que presenciaram, os defensores resolveram produzir um folheto explicando os direitos básicos que possui todo cidadão brasileiro. O informativo foi distribuído aos frequentadores do local e também aos policiais e guardas civis que participavam do operativo. “Eram coisas simples: ser sempre tratado com respeito, nunca ser obrigado a olhar para baixo, ter o policial identificado, ser informado sobre as razões da abordagem, só ser preso em flagrante delito ou se é procurado pela Justiça etc. Em qualquer segundo ano da faculdade de Direito você aprende isso”, compara Daniela Skromov. “Mas esse folheto soou como palavrão dentro da igreja – o que demonstra que essa população é achincalhada em seus direitos e, não poucas vezes, pelo próprio Estado.”

Um dos casos de violência e desrespeito mais escandalosos – e que mais teve repercussão na opinião pública – vitimou uma usuária de crack chamada Beatriz. Ao ser abordada por um soldado da PM que queria enxotá-la do local onde se encontrava, a jovem se recusou a sair. “Ela disse que ficaria na rua porque tinha direito de ficar”, conta Daniela. “Então levou um tiro de borracha na boca.” Orientada pela Defensoria, Beatriz conseguiu fazer um Boletim de Ocorrência de tortura – o que é bastante difícil. “A repercussão negativa fez com que o governador proibisse o uso de balas de borracha na operação.”

A essa altura, os defensores já estavam sendo criticados pelo governo e pela polícia como “inimigos” da Operação Centro Legal, pois, ao lembrar que os usuários de drogas, por mais sujos e maltrapilhos que fossem, também têm direitos, estavam “dificultando” o trabalho dos guardas e soldados. 

“A atuação da PM tem que se pautar pelo respeito aos direitos das pessoas. Se a Defensoria estava lá para assegurar esses direitos e foi vista como uma pedra no sapato, isso é bastante revelador”, conclui Daniela.

A Defensoria Pública atuou diretamente na cracolândia durante pouco menos de um mês. Antes do final de janeiro, já tinha batido em retirada. “Vimos que o trabalho era infinito”, justifica Daniela. Mesmo assim, conseguiram realizar cerca de 80 atendimentos jurídicos e 200 psicossociais. Conforme o tempo passava, porém, foi ficando difícil continuar. “Como a tônica da operação era dispersar, as pessoas que começamos a acompanhar no início foram saindo de lá. E essa agressividade da polícia fez com que elas ficassem muito arredias. O clima era de descrença generalizada no Estado.”

Nas palavras de Átila Pinheiro, a Operação Centro Legal “detonou todo o trabalho” assistencial que entidades, ongs e centros de atendimento mantinham na região. 

“Hoje a gente pode afirmar que em São Paulo existem dezenas de novos microespaços de consumo de drogas com as mesmas características da cracolândia”, observa o coordenador do MNPR. “O trabalho que estava sendo realizado na região era importante, porque oferecia outros cuidados aos usuários de crack. A maioria dos projetos era conduzido em parceria com o governo municipal e nada disso foi levado em conta. Eles acabaram com os vínculos que tínhamos com as pessoas de lá. E pra retomar está bastante difícil.”

Longo prazo

A mesma dificuldade é relatada por Thiago Calil, que há oito anos vai às ruas oferecer orientação aos usuários de crack de São Paulo. “O grande problema é que o poder público pensa que vai resolver a questão de um dia para o outro, em seis meses ou um ano”, avalia. 

“Se tivéssemos um projeto a longo prazo, com solução para daqui 10 ou 15 anos, aí sim o cenário pode mudar. Se começarmos a acolher essas pessoas, criar estruturas mínimas de saúde e saneamento, onde elas possam aos poucos se aproximar das equipes de assistência e se envolver com projetos culturais e profissionais.” 

Ainda assim, o psicólogo acha difícil que todos deixem totalmente de fazer uso do crack ou que o crack desapareça da cidade. “A droga faz parte da sociedade e estará sempre aí, mas temos que pensar formas de cuidado que melhorem a qualidade de vida dessas pessoas e ofereçam, de baixo pra cima, uma porta de saída para o vício.”

Segundo Calil, a sociedade paulistana (que em sua maioria, segundo pesquisas, aprova a Operação Centro Legal) costuma ver o crack com excessivo moralismo, e o usuário como um incapaz. Mas a ong É de Lei entende que os “noias”, como são chamados as pessoas mais viciadas na pedra, não são zumbis.

“É gente que está na rua fumando crack neste momento de suas vidas, mas não necessariamente esteve ali e a gente espera que não necessariamente continuará ali.” Daí que o psicólogo aponte para a importância de ouvi-los individualmente, e não como uma “massa de drogados”, para entender as razões que levaram cada um àquela situação. “O uso acaba se intensificando de acordo com o contexto em que as pessoas estão vivendo. A culpa não é só do crack.”

Fraternidade

Ninguém arrisca uma receita universal e infalível para acabar com a dependência do crack. Mas Átila Pinheiro, que já padeceu do vício, tem certeza absoluta que nada se resolve com agressão. “Não tem sentido eu olhar, sendo um dependente químico, e ver polícia batendo. Assim não irei buscar ajuda para eliminar o crack da minha vida”, diz, lembrando que só conseguiu chegar à abstinência devido ao apoio e compreensão da família e amigos.

“E muita fraternidade por conta das pessoas, que me olharam como ser humano. Senti muito preconceito em alguns meios sociais, mas outros quiseram saber se eu queria melhorar minha vida, se eu queria diminuir o uso. E dessa conversa eu gostei: diminuir, porque dizer que nunca mais vai usar, que vai parar agora, são palavras muito fortes.” Apesar de se dizer “limpo” de substâncias químicas há 25 anos, Átila reconhece que pode ter uma recaída a qualquer momento. “Necessito de uma sociedade que me apoie, de um governo que me apoie, que me dê confiança para que eu busque confiança dentro de mim.”

Outra certeza compartilhada entre os opositores da Operação Centro Legal é a de que não existe tratamento eficaz contra a dependência de drogas que não passe pela vontade do próprio usuário em deixar o vício. 

“Por isso, não somos nem contra a abstinência nem a favor do uso: queremos que as pessoas tenham informação sobre as drogas, sobre os riscos que correm e sobre como podem se proteger, para que tenham a autonomia necessária para decidir o que querem pra suas vidas”, explica Thiago Calil. “A relação que cada um desenvolve com a substância é bem íntima.”

Ele acredita que a melhor forma de auxiliar os usuários de crack em São Paulo seria replicar na cidade projetos já executados na Europa e no Canadá, e que estão pautados pela redução de danos. “Seriam lugares onde as pessoas poderiam entrar e, em vez de ficar na rua, ter uma troca com profissionais”, propõe. “Isso criaria um vínculo e as aproximaria da ideia do cuidado. Se ela começa a se proteger na hora ao fumar crack – que é o que mais faz sentido pra ela naquele momento –, talvez comece também a se preocupar em tomar banho, se alimentar, dormir num albergue, arrumar um trabalho.”

Essa, porém, ainda é uma realidade distante do cotidiano paulista, na visão da defensora Daniela Skromov, que, entre todas as críticas à Operação, vislumbra um ponto positivo. “As ações levantaram a discussão sobre o uso de drogas e a violência do Estado, e trouxeram à tona todo nosso autoritarismo”, pontua. “É melhor olhar de frente para nossas heranças ainda atuais do que acreditar inocentemente que tudo mudou a partir de 1988, que as instituições agora são democráticas e que a sociedade acredita nos direitos humanos.”

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