Para procuradora, Comissão da Verdade é ‘dever do Brasil’

Eugênia Gonzaga defende necessidade de investigação, embora enxergue riscos de anulação dos trabalhos por 'vícios' no projeto de lei

São Paulo – Para a procuradora da República Eugênia Gonzaga, a instalação da Comissão de Verdade para investigar crimes cometidos por agentes do Estado é um “dever do Brasil”. Ela alerta, porém, para riscos de anulação dos trabalhos ou de os resultados que não sejam os desejados por causa das concessões aceitas pelo governo federal a pedidos da oposição e de setores conservadores.

Segundo Eugênia, a forma como o texto foi costurado e como alcançou consenso, permitiu que se deixassem lacunas, que a própria Secretaria de Direitos Humanos reconhece. O principal “vício” refere-se ao período de 42 anos (de 1946 a 1988) no qual serão apuradas violações de direitos humanos protagonizados pelo Estado brasileiro. Defensores do projeto como está sendo proposto, inclusive o próprio governo, afirmam que mesmo que não esteja no papel, o alvo preferencial será o período da ditadura militar, de 1964 a 1985.

“A comissão não é um movimento social, mas sim um dever do Brasil”, ressaltou em debate sobre o tema “Comissão da Verdade ou Comissão de conciliação?”, na capital paulista. Eugênia Gonzaga tem extenso histórico de denúncias e acompanhamento de investigações a respeito de violações de direitos humanos no período da ditadura. Ela ocupou, em 2003 e 2004, a a função de procuradora regional dos direitos do cidadão. Por isso, condiziu processos relacionados à localização de restos mortais de desaparecidos políticos – como na recente exumação de corpos no cemitário de Vila Formosa, na zona leste de São Paulo.

Ela considera inaceitável que em pleno período democrático membros de uma comissão da verdade sejam indicados pela presidente da República, sem, ao menos, uma consulta pública para permitir a escolha  autônoma dos membros, de modo a garantir a neutralidade dos mesmos. “Os membros deveriam também ter dedicação exclusiva e direito plenos para requisitar pessoas e documentos. Mas isso não está claro nos textos da lei”.

Eugênia criticou ainda a previsão de sigilo para os trabalhos da comissão, por considerar que o trabalho de investigação também é divulgar e tornar públicos nomes e detalhes dos processos. “Há previsão de sigilo, mas não está claro se o relatório final será publicado na íntegra”, pontua.

Segundo a promotora, mais do que considerar sigiloso ou não, a comissão da verdade tem o dever de divulgar os fatos para que possam servir à Justiça ou ao Ministério Público para encaminhar possíveis punições ou pedidos de esclarecimentos, já que a comissão não terá atribuições para responsabilizar torturadores e autores de outros crimes.

A preocupação é tamanha que ela chega a afirmar que pode ser melhor não implantar a comissão neste momento do que adotar o formato apresentado. “Essa comissão tem vícios que podem levar à sua anulação”, disse.

Na segunda-feira (19), a ministra da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, afirmou em entrevista, que acredita que a comissão não terá membros “que sejam envolvidos na repressão”, mas que presença de outros militares dependerá da indicação da presidenta. Ela sugeriu, porém, que não é provável que esse tipo de indicação ocorra.

Entre esperança e receio

A Comissão de Verdade é parte integrante do terceiro Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). O objetivo inicial era investigar crimes e violações de direitos humanos praticados durante a ditadura, para que o Estado reconheça sua responsabilidade e torne públicos os fatos. Isso permitiria que população conhecesse a real história de seu país, a exemplo do que já ocorreu com vizinhos sul-americanos que passaram por períodos autoritários, como Argentina, Uruguai e Chile.

O iniciativa é vista por defensores de direitos humanos como ponto de partida para que agentes da ditadura que praticaram delitos de lesa-humanidade possam ser criminalmente punidos. Diante da resistência de setores conservadores da sociedade, inclusive militares, o governo federal fez concessões e eliminou do projeto que cria a Comissão de Verdade qualquer possibilidade de se apontarem responsabilidades criminais.

Além disso, ampliou o período de investigação – de 1964-1985 para 1946-1988 – o que pode, segundo familiares de presos e desaparecidos durante a ditadura, prejudicar o foco sobre o período mais duro, dar margem para dispersar as investigações e tornar o esforço improdutivo.

Sete membros terão dois anos para apurar e analisar crimes cometidos por agentes do Estado no período determinado. Os integrantes serão indicados pela Presidência da República, sem necessidade de consulta nem restrições. Assim, em tese, até militares podem ser incorporados, embora haja indicações de que isso não vá ocorrer – envolvidos com o regime autoritário ou com tortura estão descartados, segundo declarações de representates do Executivo. A falta de garantias ao funcionamento da Comissão previstas no texto votado pelo Congresso também é motivo de apreensão.

Mesmo assim, a Comissão de Verdade tem apoio do governo federal, de ex-ministros da Secretaria Especial de Direitos Humanos e setores dos movimentos sociais. A possibilidade de investigar processos do período é vista como uma forma de criar fatos novos para levar de volta ao Judiciário a discussão sobre a punição de crimes anteriores a 1979, quando a Lei da Anistia foi aprovada. Em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que a Lei da Anistia impede a continuidade de ações judiciais contra torturadores.

Em dezembro do ano passado, a Corte Interamericana de Direitos Humanos – da Organização dos Estados Americanos (OEA) – condenou o Estado brasileiro por não investigar crimes cometidos por agentes da repressão no episódio conhecido como Guerrilha do Araguaia. Apesar da decisão, a Justiça brasileira não manifesta disposição para retomar julgamentos criminais.

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