Ação contra Belo Monte leva Judiciário a discutir direitos da natureza

Ministério Público Federal defende que animais, florestas e rios têm direitos intrínsecos. Por isso, não podem ser meros instrumentos para a humanidade

Pelo menos dez etnias indígenas vivem em áreas próximas ao rio Xingu. Promotores querem fazer valer direitos dessas comunidades previstos pela Constituição e cobram discussão ambiental (Foto: Elza Fiúza/Agência Brasil – arquivo)

São Paulo – Uma ação em curso no Judiciário brasileiro pode ampliar a maneira como se enxerga a natureza. O Ministério Público Federal no Pará tenta mostrar que rios, florestas e animais têm um valor em si, e não devem ser vistos como simples instrumentos para o crescimento econômico. A noção, nova para boa parte da sociedade brasileira, foi apresentada em mais uma das contestações à construção da hidrelétrica de Belo Monte, entre Altamira e Vitória do Xingu, ambas no Pará.

Os procuradores baseiam-se no artigo 225 da Constituição de 1988, que afirma que todos têm direito ao “meio ambiente ecologicamente equilibrado”. No papel, é mais um caminho encontrado para tentar barrar a construção da maior obra do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal. A construção é alvo de protestos no Brasil e no exterior por conta dos efeitos nocivos que deve provocar, como deslocamento de populações indígenas e ribeirinhas e o desmatamento de áreas intocadas da Amazônia.

“A ideia do Ministério Público ao propor essa ação é que o Judiciário fixe um vetor de interpretação para esse dispositivo”, explica Daniel Avelino, procurador da República no Pará e um dos responsáveis pela ação apresentada neste mês. “Até quando o direito à natureza vai ser preservado pela Constituição face a esses empreendimentos que estão sendo feitos na Amazônia?”

Na prática, se a interpretação defendida pelos procuradores for endossada pela Justiça na avaliação do caso, haveria um alargamento do horizonte do Judiciário brasileiro – e, de certa forma, da sociedade como um todo – sobre o papel da natureza no mundo. A linha de argumentação transita entre a ética e o Direito ambientais, campos que se desenvolveram tardiamente no Brasil em comparação a nações como Estados Unidos e Austrália.

Debate

Ao longo do tempo, surgiram duas linhas de pensamento. De um lado, uma visão antropocêntrica, ou seja, o ser humano ao centro, que reconhece a necessidade de preservar a natureza por se tratar de um instrumento fundamental à continuidade do atual sistema. De outro, a visão ecocêntrica, que reconhece na natureza um valor intrínseco, com funções e existência próprias, independentes das necessidades de mulheres e homens. 

“O Ministério Público tenta colocar no âmbito da discussão judicial esta questão para que, se vier a ser acatada, forme precedentes para decisões futuras”, justifica Ana Maria de Oliveira Nusdeo, professora da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo (USP).

Para a especialista em Direito ambiental, o fato de a Constituição manifestar uma visão abertamente antropocêntrica ao enxergar o meio ambiente como um direito dos brasileiros, e não um sujeito de direitos em si, não é impedimento para que se avance no entendimento do papel da natureza. “O sentido da interpretação que se dá às normas constitucionais pode ir se transformando ao longo do tempo.” Como reconhecem os próprios procuradores, não se trata de mergulhar em um “ecocentrismo profundo”, mas de passar de uma visão antropocêntrica “utilitária” para outra de corte “alargado”. 

Avanços

O Equador foi a nação que caminhou mais longe até hoje no reconhecimento da natureza como um sujeito de direitos. A nova Constituição, promulgada em 2008, dedica um capítulo inteiro ao assunto, e predomina a visão de que a Pacha Mama, ou a Mãe Terra, tem “direito a que se respeite integralmente sua existência e manutenção e regeneração de seus ciclos vitais, estrutura, funções e processos evolutivos”. Ou seja, os direitos humanos, individuais ou coletivos, não se sobrepõem aos direitos das demais comunidades existentes no planeta.

Os cinco artigos indicam que os cidadãos devem exigir do Estado o cumprimento de tais prerrogativas. A visão é de que a natureza é protegida pelo Direito da mesma maneira que ocorre com crianças, por exemplo, que podem gozar dos preceitos constitucionais, mas não têm condições de exigir o cumprimento dos mesmos. “Ainda estamos em tempo para que nossas leis reconheçam o direito de um rio a fluir, proíbam os atos que desestabilizem o clima da Terra, e imponham o respeito ao valor intrínseco de todo ser vivo”, defendeu, em artigo, Alberto Acosta, que presidiu a Assembleia Nacional Constituinte do Equador.

O preceito constitucional se associa ao conceito do “bem viver” das comunidades originárias americanas de uma convivência harmoniosa e integrada entre natureza e seres humanos. É este o caminho que o Ministério Público Federal no Pará quer fazer valer ao evocar o artigo 225 da Constituição brasileira, indicando que o princípio do reconhecimento respeitoso já está manifesto no conjunto de normas promulgado em 1988.

Diferentemente do que acontece no Equador, o Judiciário brasileiro precisaria estabelecer um parâmetro que norteie o modelo de país que se deseja, o que passa por assegurar às futuras gerações o direito a um meio ambiente equilibrado. “Belo Monte tem de ser colocado em conjunto com o plano energético nacional, com outros empreendimentos ventilados para a Amazônia. É preciso conciliar a necessidade energética e a preservação do meio ambiente sempre adotando uma alternativa que seja mais eficiente”, defende Avelino.

Para os procuradores, Belo Monte se constitui em uma obra de efeitos pífios em termos de geração de energia, e de deletérias consequências à vida na Amazônia. Eles se baseiam nos estudos apresentados pelo Painel de Especialistas a respeito para indicar que apenas a repotenciação de antigas turbinas de hidrelétricas e a troca das linhas de transmissão valeriam, respectivamente, duas vezes e meia e duas vezes o potencial energético da usina do Pará. 

Além disso, a construção deve afetar diretamente a Volta Grande do Rio Xingu, uma das regiões tidas pelo Ministério do Meio Ambiente como das mais ricas do Brasil em biodiversidade. A pesca, traço cultural fundamental dos povos indígenas, será comprometida por mudanças no curso e na vazão de água do rio, segundo defensores dos direitos dessas comunidades. Sem meio de subsistência, elas podem ser levadas a deixar suas terras.

Um eventual deslocamento é possibilidade vedada pela Constituição nacional. Com tudo isso, para o Ministério Público Federal, não há compensação financeira que seja suficiente para dirimir os impactos provocados por Belo Monte, já que parte das riquezas naturais seria descaracterizada e afetada de modo irreversível.

Mesmo sem saber se o Judiciário dará respaldo a esta visão, os procuradores enxergam na questão um preceito comparável à abolição da escravatura. A analogia, segundo explicam, é que, em um primeiro momento, causa estranheza falar em direitos da natureza. Mas a aposta é de que, em alguns anos, a questão será tratada com normalidade.

Para Ana Maria de Oliveira Nusdeo, é hora de testar se já há abertura para essa visão. “Não sei em que medida vai se cruzar a fronteira para entender o meio ambiente como um sujeito de direitos, algo que tem seu próprio valor, um valor intrínseco. Acho que a tendência é se patinar um pouco conceitualmente. Pode ser um caso interessante para ver como a jurisprudência vai receber este argumento e respaldá-lo ou não.”