14 depoimentos sobre os 30 anos da Anistia

Carlos Eugênio Paz, Cecília Coimbra, Juca Kfouri, Renato Pompeu, Mouzar Benedito, Glenda Mezarobba, Cláudio Lembo, Lucas Figueiredo, Duarte Pacheco Pereira, Fábio Comparato, Ferreira Gullar, Frei Betto, Paulo Abrão, Plínio de Arruda Sampaio e Lucas Figueiredo falam sobre o período

Carlos Eugênio Paz
(escritor e ex-dirigente da ALN – Aliança Libertadora Nacional)

Em primeiro lugar, temos de levar em conta que a Lei de Anistia aprovada em 22 de agosto de 1979, não foi ampla, nem geral e nem irrestrita, como a sociedade civil queria e exigia. Falo com conhecimento de causa, pois voltei ao Brasil em 1981 e ainda não estava anistiado, tendo de ficar na clandestinidade até entrar na Embaixada da França, em março de 1982, esperando o julgamento de meu recurso ao Supremo Tribunal Federal – STF, quando finalmente minha anistia foi promulgada. Outro problema da Lei de Anistia, é que trata igualmente os combatentes da liberdade, os militantes das organizações de resistência ao golpe de estado de 1964, e os torturadores e assassinos que assaltaram o poder rasgando a Constituição democrática de 1946. A Lei pressupões que toda a punibilidade está extinta, quando sabemos que a tortura é crime inafiançável e imprescritível segundo todas as cortes internacionais de justiça. Hoje verificamos que na verdade a Anistia tem sido um longo processo de conquistas que já dura trinta anos e ainda não chegou ao fim. No meu entender seu término se dará com a responsabilização histórica dos golpistas de 1964 e a punição dos mandantes e dos executores de torturas.

Cecília Coimbra
(Grupo Tortura Nunca Mais/RJ)

A gente lembra, mas não comemora esses 30 anos porque a Anistia “ampla, geral e irrestrita” não aconteceu. Como disse o historiador Hélio Silva foi uma anistia fardada. A Lei não pode anistiar os torturadores. Essa é a interpretação feita pelos juristas da ditadura e que a sociedade brasileira engoliu e que grande parte da esquerda também engoliu. Houve terrorismo de Estado que fez da tortura instrumento oficial. O movimento hoje é pela releitura da Lei da Anistia para que oficialmente se reconheça que os torturadores não foram anistiados.

Claudio Lembo
(advogado, professor universitário e ex-governador de São Paulo)

A atual Lei de Anistia permitiu ao Brasil o retorno às suas tradições históricas. Em todas as situações de exceção, no final do ciclo houve uma anistia. Isso é oportuno porque permite o reencontro dos brasileiros com o Brasil.

Duarte Pacheco Pereira
(vice-presidente da UNE em 1964 e dirigente nacional da AP – Ação Popular de 1965 a 1973)

A anistia ampla, geral e irrestrita, arrancada do regime ditatorial tecnocrático-militar pelas forças democráticas e populares há 30 anos, representou, em primeiro lugar, uma reparação pelas perseguições injustas a opositores da ditadura, as quais cassaram mandatos, demitiram trabalhadores, interromperam cursos e carreiras, separaram famílias, empurraram militantes para o exílio, ou expuseram os que ficaram à ameaça permanente de prisões arbitrárias, torturas cruéis e assassinatos camuflados. Muitos desses perseguidos nem eram partidários da resistência armada aos opressores fardados. A anistia representou, em segundo lugar, e este foi seu significado mais relevante, a possibilidade de que milhares de militantes políticos e sindicais, de jovens estudantes e intelectuais amadurecidos, de artistas e cientistas reconhecidos, de militares progressistas, homens e mulheres, marginalizados à força, voltassem a contribuir de forma desimpedida para a construção de uma nação brasileira mais livre, mais soberana, mais desenvolvida e mais justa.
Fábio Konder Comparato
(jurista e professor aposentado da Faculdade de Direito da USP)

A Anistia foi a maneira que os militares encontraram para deixar o poder preservando a sua imunidade em relação aos crimes do passado. A melhor maneira de se educar politicamente é mostrar que quanto maior o poder, maior deve ser a responsabilidade.

Ferreira Gullar
(poeta e escritor)

Diria que a anistia foi, primeiro, uma aspiração da sociedade brasileira. Em determinado momento muitos setores passaram a exigi-la, o retorno dos exilados e tudo aquilo que ela implicaria. O outro lado é que a anistia foi, na verdade, muito em função dessas pressões, um acordo entre o regime militar e a oposição, que permitiu o fim do regime. Naquela altura os militares já aceitavam negociar uma saída para eles, o que implicaria no retorno ao regime democrático. E essa saída implicaria em não punir, digamos assim, e esquecer tudo o que aconteceu de um lado e de outro. A anistia foi uma negociação porque dentro do regime havia forças que se opunham ao retorno do regime democrático. Desde o começo do regime havia tensão entre os militares mais radicais, mais fascistas e autoritários, e outros menos. A luta dentro do regime era pela preponderância de uma dessas tendências. A anistia vem também como uma forma de calar, de contentar esses setores mais radicais do regime para tornar viável o retorno ao regime democrático. Nesse aspecto foi positiva.
Frei Betto
(escritor e jornalista)

É preciso conhecer o passado para, no presente, jamais ceder à tentação de repeti-lo no futuro. Se hoje o Brasil goza de relativa democracia é graças a uma geração de jovens que deu a vida para enfrentar a ditadura e, movida a utopia, lutou heroicamente pelo fim da opressão e da injustiça.

Glenda Mezzaroba
(Cientista política e autora de Um Acerto de Contas com o Futuro: Anistia e Suas Consequências)

É importante relembrar, rememorar, mas não comemorar. É fundamental voltar àquele período porque envolve a violência do Estado. Foi um momento da história em que ocorreram violações em massa de direitos humanos. A ditadura não colocou nesses termos quando fez a lei, mas é essa a questão colocada. Uma parte da sociedade apoiou o golpe, tendo à frente as Forças Armadas, que comandaram o país por 21 anos. Lembrar da anistia é lembrar do terror do Estado, das torturas, desaparecimentos e assassinatos políticos. E o legado das violações em massa não foi resolvido de maneira satisfatória pelos governos democráticos que sucederam esse período. Lembrar essa efeméride envolve isso. A Lei da Anistia foi muito pouco testada nos tribunais nacionais, houve poucas ações na Justiça julgadas em primeira instância.

Juca Kfouri
(jornalista e escritor)

Com a singela palavra esquecimento defino esses 30 anos. Esquecimento dos eventuais crimes cometidos por quem se insurgiu contra os que golpearam a democracia e tomaram o poder pela força do arbítrio. Mas sem esquecimento para os que torturaram e mataram gente indefesa.

Lucas Figueiredo,
(jornalista e escritor, autor de livros sobre o período da ditadura militar)

Vou citar um caso pontual, que trato no livro Olho por olho – Os livros secretos da ditadura. Em 1979, com o início do processo da Anistia, os advogados dos presos políticos passaram a ter acesso aos processos de réus políticos que tramitavam no Supremo Tribunal Militar. Nesses processos, estavam as provas definitivas dos crimes cometidos nos porões da ditadura: tortura, sequestro, assassinato e desaparecimento de presos políticos. Todos os processos foram xerocados (mais de 1 milhão de páginas), preservados e processados, resultando anos depois no livro-denúncia Brasil: Nunca Mais, organizado pelo então cardeal-arcebispo de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns. Se não fosse a Anistia, esses documentos poderiam ter sido destruídos.

Mouzar Benedito
(jornalista, escritor e geógrafo)

A campanha pela Anistia empolgou o Brasil de um jeito incrível. Eu fazia cobertura para o jornal Em Tempo da situação dos presos políticos em São Paulo e no Rio de Janeiro. Alguns relutavam, achando que seria agir em causa própria, mas aderiram à ideia de “anistia ampla, geral e irrestrita” que no projeto do governo foi diferente. Quando dizem “foi para todos os lados”, é uma farsa. Os acusados do que se chamava à época de “crimes de sangue” não foram anistiados. A maioria deles saiu porque suas penas foram revistas. Mas mesmo a Anistia sendo parcial, permitiu a chegada dos exilados e se estendeu até ao Uruguai onde Flávia Schilling era mantida presa. A campanha nacional por sua libertação chegou a tal ponto que até o Figueiredo pediu sua libertação. Quando ela chegou em Congonhas (aeroporto em São Paulo) foi uma festa como se tivesse chegado a seleção brasileira de futebol campeã do mundo, coisa que nunca vi igual. A campanha pela anistia estava ligada à esperança de melhorar o Brasil.

Paulo Abrão
(presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça)

Os trinta anos de luta pela anistia no Brasil confundem-se com o período de luta e consolidação da democracia, o fundamental para a juventude é entender que, sem o esforço daqueles que sofreram ou tombaram pelo retorno da democracia, hoje não poderíamos viver a plenitude de nossas liberdades. A censura e o arbítrio, hoje, não mais existem em função destas lutas, e somente com a consciência disto é que poderemos seguir tratando de aprimorar nossa democracia.
Plínio de Arruda Sampaio
(advogado, militante político e presidente da ABRA – Associação Brasileira de Reforma Agrária, além de dirigir o semanário Correio da Cidadania)

O golpe militar de 1964 causou duas rupturas: rompeu-se com ele o pacto populista, ou seja, a aliança entre a burguesia e a classe operária; essa ruptura causou um rompimento no seio da própria burguesia: entre os setores que apoiavam o golpe e os setores que a ele se opunham. Durante os vinte anos em que detiveram o poder, os militares fizeram um novo pacto com a classe trabalhadora – uma aliança em que a posição desta era rebaixada, mas conservava algumas das conquistas obtidas no período populista. Na Constituinte, a forte presença da CUT, deu como resultado a restauração e a ampliação dos direitos trabalhistas, mas, a reviravolta neoliberal anulou na pratica esse avanço. Isto quer dizer que, do ponto de vista da classe trabalhadora, a anistia não teve uma consequência maior, porque o processo que a determinou – a campanha das Diretas-Já terminou com uma conciliação de cúpula que não permitiu a constituição de um pacto social no qual a classe trabalhadora tivesse uma participação e uma importância proporcionais ao seu peso demográfico e econômico. A reconstituição que não foi possível nas relações entre a burguesia e a massa popular, operou, contudo, plenamente no âmbito da própria burguesia. A anistia, nos seus vários tempos, terminou reintegrando plenamente os punidos pelo regime militar na plenitude dos seus direitos políticos e até mesmo compensou-os generosamente pelo período de ostracismo. A importância disto é o retorno de figuras que puderam retomar a luta popular, embora também neste caso, a reviravolta neoliberal tenha reduzido bastante o peso político dessas figuras. Estas considerações não tiram o mérito do esforço das pessoas devotadas e corajosas que levantaram a bandeira da anistia quando isto ainda configurava uma conduta considerada subversiva pelos militares. Esta ressalva é essencial, porque a Pátria é muito mais uma construção feita a partir dessas iniciativas cívicas e corajosas, do que das vicissitudes do jogo político.

Renato Pompeu
(jornalista e escritor)

A juventude de hoje tem de se esforçar para compreender aquela época: no regime militar, milhares de pessoas não tinham direitos políticos, isto é, não podiam votar nem ser eleitas para nenhum cargo; eram conhecidas como “cassados”, por terem sido cassados os seus direitos políticos e, conforme o caso, os seus mandatos. Centenas foram presas ou mortas por, de diferentes maneiras, inclusive a luta armada e assaltos, e com diferentes objetivos, inclusive a substituição do capitalismo pelo socialismo, se oporem ao regime militar. Dezenas foram banidas do país, eram brasileiros que não podiam morar no Brasil e nem mesmo visitar a sua terra natal. A anistia aos cassados, aos presos e aos banidos, libertou todas essas pessoas, que assim voltaram a participar da vida política e da vida geral do país. Um dos pontos mais controvertidos é que a anistia foi estendida aos torturadores e aos assassinos a serviço do regime militar, pelo recurso de incluir, no texto legal, a expressão “crimes conexos” aos “crimes políticos” a cujos autores se perdoava indiscriminadamente. Os torturadores e assassinos a serviço dos militares, muitos dos quais já morreram, ficaram impunes, ao contrário dos opositores ao regime militar, que haviam sido punidos por cassação, prisão ou banimento. Essa não é a única diferença entre os dois grupos. A tortura, segundo legislação internacional reconhecida pelo Brasil, aliás, reconhecida pelo próprio regime militar, é um crime imprescritível, isto é, uma lei maior do que a Lei de Anistia, que isentou de culpa os torturadores, manda puni-los. Diante dessa situação, há três posições: a de deixar as coisas como estão, a de punir os torturadores, e a de apenas divulgar quem torturou quem e como, expondo os responsáveis à opinião pública, mas não os punindo. Trinta anos depois, a anistia ainda gera paixões.

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