Direito e dignidade

Projeto de lei Mães de Maio quer apoiar vítimas da violência estatal em São Paulo

Patrocinada pelo vereador Eduardo Suplicy (PT), proposta visa garantir auxílio psicológico e social para famílias que tiveram filhos ou parentes mortos pelo Estado

Rafael Bonifácio
Rafael Bonifácio
Projeto prevê garantia de tratamento psicológico e programas sociais para as famílias atingidas pela violência de governo. ‘O Estado tirou o nosso direito de sorrir’, lembram Mães de Maio

Ponte Jornalismo – Prestes a completar seu segundo mandato como vereador de São Paulo, Eduardo Suplicy (PT) protocolou na última sexta-feira de novembro (27) um projeto de lei municipal para amparar sobreviventes e familiares de vítimas da violência produzida por agentes do Estado, em especial pelas forças de segurança. Se aprovada, a Lei Mães de Maio, como foi batizada, irá oferecer suporte institucional, proteção social e assistência médica para minimizar os impactos negativos gerados por episódios de violência.

“Essa lei nasce do nosso útero. É para nos ajudar a continuar vivas porque estamos morrendo. Estamos adoecendo. É uma doença invisível”, disse à Ponte Débora Maria da Silva, coordenadora do movimento Mães de Maio. O projeto de lei é fruto de uma visita que ela e Francilene Fernandes, 40, integrante do grupo, fizeram ao gabinete do vereador no segundo semestre deste ano.

O filho de Débora, Edson Rogério Silva dos Santos, foi assassinado por grupos de extermínio formados por policiais durante os Crimes de Maio, em 2006 – nomeados pela imprensa da época como “Ataques do PCC (Primeiro Comando da Capital)”. 

Memória e dor

No dia 12 de maio daquele ano, 765 presos foram transferidos para a Penitenciária II de Presidente Venceslau, interior de São Paulo, às vésperas do Dia das Mães. O objetivo da transferência era isolar líderes do PCC, a maior facção criminosa do país. Como resposta, motins foram organizados dentro das prisões e diversos pontos da cidade foram atacados, resultando na morte de 59 agentes públicos, entre policiais e agentes penitenciários. A retaliação por parte dos policiais veio com força nos dias seguintes, com a morte de 505 civis por disparos de arma de fogo no estado de São Paulo.

Se as memórias do noticiário da época ainda povoam o imaginário social, na vida das Mães de Maio elas são recorrentes. Para além da dor, essas mulheres ainda lutam por respostas e por direitos – já que 14 anos depois muitas famílias sequer puderam enterrar seus entes e sequer foi comprovado que as vítimas possuíam algum envolvimento com o crime organizado.

Pilares

A criação do PL nº 734/2020 foi originalmente das próprias Mães de Maio com o auxílio dos advogados voluntários Gabriel Sampaio, coordenador do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional e de Litígio Estratégico da Conectas Direitos Humanos, e Silvia Souza, coordenadora adjunta do departamento antidiscriminatório do IBCCRIM. Depois, o movimento propôs o texto ao gabinete de Eduardo Suplicy, vereador mais votado de São Paulo nas eleições deste ano.

O projeto é baseado em três pilares: oferecer suporte institucional, proteção social e assistência médica aos familiares de vítimas de violência estatal. 

Tratamento psicológico e programas sociais para as famílias

“Essa lei assegura o tratamento psicológico, que é prioridade quando uma mãe ou uma família perde seu ente querido. Esse acompanhamento vai evitar doenças oportunistas”, pontuou Débora, que, ao longo do anos, relata ter visto muitas das Mães de Maio sofrendo com depressão e perdendo suas vidas. 

Outro aspecto citado por ela é a necessidade de amparo jurídico qualificado. “A Defensoria Pública está aí, mas não almeja o que almejamos. Ela não atua na parte criminal. Os familiares passam por vários defensores e a coisa não anda”, disse.

A Lei Mães de Maio também inclui os familiares em programas sociais para que eles possam se manter economicamente. “Quando um policial morre, as indenizações vão para a família”, reforça a ativista. “O Estado tem que estipular uma ajuda porque esses familiares ficam doentes. A exemplo da Fran”, mencionou Débora, se referindo a uma colega de 40 anos que recentemente deu à luz e descobriu estar com um câncer grave.

“Não estamos pensando nas nossas demandas, nas nossas situações. Muitas de nós morreram, adoeceram. Eu, inclusive, estou com diagnóstico de um câncer, descobri semana passada”, Francilene falou à Ponte. “Não é por nós. É para que outras famílias que venham entrar nessa engrenagem da violência possam ter essa atenção desde o início. Esse olhar jurídico, social, psíquico.”

Para ela, que é assistente social e estuda violência policial e os Crimes de Maio no doutorado, esse tipo de ajuda é importante para que os familiares das vítimas da violência praticada pelo Estado se mantenham lúcidos. “Esse projeto de lei é fundamental porque vai representar uma possibilidade concreta de reparação social e humana.” 

Uma oportunidade que Francilene e a família não tiveram quando seu irmão Paulo Alexandre Gomes foi abordado e detido pela Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar) no dia 16 de maio de 2006. O corpo dele foi ocultado e, além de os familiares nunca mais terem notícias, não houve nenhum encaminhamento do Estado para que pudessem se recuperar emocionalmente. “Não queremos mais ouvir que uma mãe está sofrendo porque não tem acompanhamento psicológico”, concluiu.

Quando perguntado sobre a importância do projeto de lei, Suplicy falou: “Basta observar o depoimento da avó de Rebeca e Emily, as duas meninas que foram baleadas enquanto brincavam na porta de casa”. O vereador se refere ao caso das primas que morreram com um tiro de fuzil na última sexta (4). A avó teria visto os policiais atirando na direção das crianças e, ao Globo, desabafou: “Ainda consigo falar e estou de pé para resolver as coisas, mas não sei o que será de mim quando eu parar. Isso não pode ficar impune. A culpa também é dos governantes que dizem que bandido bom é bandido morto e dão carta branca para a polícia, mas esquecem que na favela a maioria é trabalhador”. 

Leia mais : Em 2020, 12 crianças já morreram baleadas no Rio. ‘Segurança gasta para matar’

Suplicy menciona casos simbólicos que ainda não têm resolução, como o Massacre de Paraisópolis, que completou um ano no dia 1º de dezembro, e também da vereadora Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes, mortes que completaram mil dias nesta terça (8). “É importantíssimo que venhamos a esclarecer inteiramente esses episódios”, pontuou.

Para Débora, as estruturas precisam ser revistas: “O estado está muito confortável em matar os nossos filhos”.



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