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O ‘Povo da Rua’ se reencontra na exposição sobre Dom Paulo Evaristo Arns

O 'Povo da Rua' se reencontra na exposição sobre Dom Paulo Evaristo Arns

São Paulo — “Depois que passar daquela porta não tem mais nenhum inocente aqui dentro! Todos são culpados!”, berra o delegado, ao mesmo tempo em que bate com força seu cassetete sobre uma pequena mesa de madeira. O público se assusta. A maioria são pessoas em situação de rua, que se olham sem entender o que acontece. “Quero muita ordem aqui hoje!”, grita novamente o delegado, enquanto com as mãos busca pequenas fichas de papel e começa a chamar em voz alta os nomes ali contidos. “Vão conversar com o doutor Fleury hoje”, anuncia, com certo sarcasmo na voz.

Sérgio Fernando Paranhos Fleury foi delegado a partir de 1968 do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), durante a ditadura civil-militar. Angariou a fama de ser considerado um dos repressores mais cruéis da época, acusado de chefiar os esquadrões da morte que agiam na periferia de São Paulo nas décadas de 1960 e 1970, participar do assassinato de Carlos Marighella e Carlos Lamarca, atuar na Chacina da Lapa, em São Paulo, e a Chacina da Chácara São Bento, em Recife.

Mas isto foi em 1979. Aqui, na peça Lembrar é Resistir, encenada como parte da Exposição Dom Paulo Evaristo Arns: 95 anos, o temido Fleury está vivo e sua presença permeia os 30 minutos do espetáculo, que conduz o público de volta aos Anos de Chumbo, por dentro das celas do Deops, em meio ao sofrimento psicológico e físico dos presos políticos. Aos berros, o delegado, interpretado pelo ator Tin Urbinatti, então “convida” cerca de 30 pessoas em situação de rua a conhecer a “sucursal do inferno”. A intimidação, a violência policial, o abuso e o arbítrio representado pelo delegado da ditadura, são comportamentos que ainda fazem parte do cotidiano de quem vive nas ruas do Brasil em 2018.

A relação de Dom Paulo com o “povo da rua” sempre foi de muito respeito e afeto. Em 1994, ao ganhar o prêmio Niwano da Paz, concedido pela comunidade budista japonesa de Tóquio, o cardeal-arcebispo emérito de São Paulo perguntou à população de rua qual seria o desejo dela. A resposta foi inusitada: queriam uma casa de oração, pois reclamavam de sofrer preconceito ao entrar nas igrejas em horários de missa. Com o valor do prêmio, cerca de US$ 190 mil, em 1997 foi então inaugurada a Casa de Oração do Povo de Rua, no bairro da Luz, região central da cidade.

Ontem e hoje

Ao final da peça, as pessoas em situação de rua se reuniram para uma roda de conversa justamente na Casa de Oração reproduzida na exposição, acompanhados pelo padre Júlio Lancelotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo, da biógrafa de Dom Paulo Marilda Ferri e por Paulo Pedrini, coordenador da Pastoral Operária.

“O povo da rua é muito torturado, humilhado, agredido. É importante fazer a lembrança do passado não porque é bom, mas porque ainda é muito presente”, ponderou o padre Júlio Lancelotti. As pessoas então começaram a se manifestar, comentando sobre a peça de teatro que assistiram e dando depoimentos sobre a dura e violenta realidade de quem vive na rua.

Dandara Lowatcheck, de 23 anos, pediu a palavra. Detida por porte de drogas em 2014 – numa situação em que afirma ter tido uma sacola com a droga enxertada nos seus pertences –, ficou presa por 10 meses, sendo seis no Centro de Detenção Provisória (CDP) de São Vicente, na Baixada Santista. Foi torturada com choque. Era forçada a tomar banho gelado.

“Em dia de chuva, jogavam sabão em pó no corredor da cela e quem escorregasse, apanhava”, contou. Dandara disse ser comum, na prisão, os guardas dispararem tiros de bala de borracha na parede do banheiro enquanto as detentas tomavam banho. E cada nova presa que chegava era “recepcionada” com bombas de efeito moral.

Os depoimentos se sucedem. Com pequenas variações, quem tivera a experiência de passar pelo sistema prisional narrava a violência sofrida, quase sem nenhuma diferença daquela recém encenada pelos atores ao mostrar como era a vida dos presos políticos no Deops. E quem nunca tivera “passagem” pela prisão, compartilhava a cruel experiência do dia a dia nas ruas de São Paulo, com a violência protagonizada seja pela Polícia Militar ou Civil, ou a Guarda Municipal.

Padre Júlio retoma a palavra e passa a contar fatos e causos da vida de Dom Paulo, a quem define como “o maior defensor dos direitos humanos”. “Dom Paulo estava sempre no lado dos fracos. Ele está presente na luta do povo da rua, na luta contra a tortura, foi quem mais enfrentou gente poderosa”, afirmou.

Então lembra a história do prêmio recebido por Dom Paulo e a construção da Casa de Oração do Povo de Rua. “Ninguém pode tirar aquela casa do povo da rua. Ela vai estar lá para sempre, porque foi assim que Dom Paulo quis. Eu vou morrer, vou passar, outros virão e vão passar também, mas a casa vai permanecer.”

Nunca Mais

A peça Lembrar é Resistir foi encenada pela primeira vez em 1999, ocasião em que se completavam 20 anos da Lei da Anistia. Dos atores que agora realizam novamente o espetáculo, Tin Urbinatti é o único remanescente da montagem original. Ainda vestindo o macacão cinza que usa na peça, com o longo cassetete preto apoiado no colo, Tim lembra que no final dos anos de 1990 o momento no país era de aspiração à democracia. Um clima que, avalia, mudou muito nos dias atuais.

“Agora temos a terrível surpresa de estarmos mergulhados na ditadura. Que merda! Estamos falando pra esse público que está sendo bombardeado pelo tema da ditadura”, pondera o ator.

A montagem atual mistura no texto elementos da ditadura de 1964-1985, com referências a crise política e institucional do presente. Uma mescla percebida pelo público, acredita Tim Urbinatti. “Eles constatam que estamos fazendo uma crítica ao presente, eles estão pensando. O apelo à porrada é muito censo comum e avassalador.”

O ator reflete que a violência protagonizada pela polícia e os órgãos de segurança durante a ditadura, ainda é a mesma que reprime e oprime as pessoas mais pobres nas periferias do país, os negros e as pessoas em situação de rua. “A peça não tem mediação. O texto não é de 70, é de hoje. A polícia que fez aquilo lá na ditadura, é a mesma de hoje”, afirma.

 

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