entrevista

O Brasil e o deserto de ideias sobre a revolução tecnológica da internet

Na avaliação do economista Gilson Schwartz se o Estado não planejar como o Brasil fará se integrará a tudo que surgiu no mundo a partir da internet, continuaremos a insistir em bordões como 'Estado x mercado' e 'direita x esquerda'

CC wikimedia / Pixhere

IHU On Line – “Todos os candidatos disponíveis estão brigando, empunhando bandeiras, chavões e propostas que são apenas uma mirada vesga pelo espelho retrovisor; é um deserto de ideias sobre a maior revolução tecnológica da história da humanidade e ninguém é capaz de articular um modelo de desenvolvimento que coloque essa preeminência da ‘iconomia’, da cultura digital e da economia criativa”, adverte Gilson Schwartz na entrevista  concedida por telefone à IHU On-Line.

Na avaliação do economista, se o Estado não tiver um planejamento de como o Brasil fará parte da revolução tecnológica gerada pela internet, “podem falar o que quiserem de previdência, de petróleo e de agricultura, pois todo o resto perde o sentido se não houver essa perspectiva da economia como ‘iconomia’ de ícone, de inteligência e criatividade”. Sem uma atenção para essa agenda, frisa, continuaremos a insistir em “velhos bordões”, como “Estado versus mercado, direita versus esquerda”.

O economista também reflete sobre as dificuldades do Brasil em se inserir na revolução digital e menciona, entre os entraves que dificultam esse processo, a “disputa macropolítica, que diz respeito aos recursos do Estado”, a “carência de pensar a economia numa perspectiva que seja da economia da informação, da educação e da cultura e não a economia dos recursos naturais, dos mercados ou do planejamento estatal”. Embora a transformação digital seja algo recente, pontua, “começamos a discutir esse novo modelo em 2002. Então estou falando de um diálogo que é discutido há duas décadas no Brasil”.

Gilson Schwartz é graduado em Economia e em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP, mestre e doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. É pesquisador associado ao Núcleo de Política e Gestão Tecnológica – PGT da USP e integra o Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar Diversitas, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

Confira o trecho inicial da entrevista:

O que significa falar em “iconomização” da vida?

Sou de uma geração que acompanhou o nascimento da internet e começou a trabalhar muito cedo com ela. Já nos primórdios da internet, nos anos 90 do século passado, uma das principais visões globais sobre o que seria a internet era a de que ela seria uma vida digital. Isso já expressava uma realidade que cresceu exponencialmente: as redes cresceram e continuam crescendo e o fenômeno da digitalização se tornou quase que sinônimo de vida real.

A própria internet se tonou internet das coisas, ou seja, todas as coisas inanimadas fazem parte dessa rede supostamente inteligente, programada e altamente conectada. O outro lado da própria digitalização é que ela se tornou, em si mesma, invisível, e a realidade passa justamente a ser percebida por todos através dela, onde estão os ícones, os quais passam a organizar até mesmo a nossa forma de se vestir, de andar, e até de fazer uma entrevista pelo celular, como estamos fazendo agora. Ou seja, essa tecnologia permite mais mobilidade e uma série de inovações importantes.

O ponto comum de toda essa digitalização é que o digital passa a ser algo natural, ou seja, faz parte da natureza. A grande questão é quais são os ícones que você, seus amigos, sua família, sua comunidade usam, quais são os ícones que organizam a nossa vida digital.Nicholas Negroponte já alertou há muito tempo, e com muita razão, que essa vida digital constitui uma “iconomia”, ou seja, não é simplesmente um processo tecnológico de digitalização, mas trata-se de um processo simbólico em que surgem novas formas de produzir riqueza, valor, emprego. Até novas moedas estão surgindo. É isto que chamo de “iconomia”, uma economia dos ícones que corresponde à economia política da vida digital.

Como esses ícones digitais têm mudado a nossa vida? Alguns teóricos avaliam que a internet e a digitalização têm gerado mais controle na sociedade e outros ressaltam os aspectos positivos que surgiram com esse fenômeno. Qual é o seu balanço?

O contraponto entre controle ou poder, de um lado, e liberdade, de outro, não é novo e não é algo que se restringe à tecnologia digital. O contraponto entre controle e liberdade ou entre poder e criatividade, já é discutido na sociologia ocidental há muito tempo, pelo menos desde o final do feudalismo, quando se percebe uma cultura emergente, que coloca no lugar de Deus, no lugar dessa potência universal, eterna e magnânima, o ser humano com todas as suas certezas e incertezas. O projeto cartesiano funda a nossa capacidade de fazer ciência justamente a partir da independência e autonomia do sujeito.

Esse projeto teve várias etapas ao longo da história e surgiu muito antes das máquinas de calcular. Mas foi mais intenso exatamente no período em que o capitalismo estava se estabelecendo em escala global, num período em que surgiu a contabilidade, surgiram as calculadoras e máquinas de calcular. Desde esse período, Leibniz e outros se perguntam sobre qual é a relação entre o sujeito que pensa e entre o mundo que está aí, o objeto, e sobre qual é a nossa capacidade de estabelecer relações entre o sujeito e o mundo através de instrumentos.

Aí você pergunta que instrumentos são esses. Eles são, por exemplo, a própria imprensa e a escrita. Esses são, desde o início, instrumentos de informação que podem tanto servir ao controle, quanto a “sair do controle”, tanto à opressão quanto à emancipação. A mesma ferramenta pode ser usada para matar ou conscientizar; essa é uma decisão que diz respeito ao livre-arbítrio do ser humano.

Essa é a construção que está implícita também na internet, ou seja, o homem pode usar a internet para fazer bullying, para fazer discurso de ódio, ou pode usar a internet para mobilizar a comunidade a limpar um córrego ou ajudar na reforma de uma escola. O que se faz com essa ferramenta? Mais poder, controle e violência, ou mais liberdade, consciência e criatividade? É o livre-arbítrio dos indivíduos e das coletividades que decide.

A tecnologia em si não tem o poder de tomar uma decisão; a tomada de decisão é humana. Por mais que a inteligência artificial esteja tomando decisões no lugar dos humanos ou induzindo o comportamento de humanos com a robotização, para que isso ocorra, alguém tem que programar esses robôs. Em última análise, se você está usando uma livraria digital, por exemplo, e o robô programou errado, você vai poder exercer seu direito de consumidor.

Evidentemente há o risco de as empresas que dominam essas tecnologias em grande escala utilizarem a própria tecnologia para aumentar o controle e a extração de lucros, a redução de custos e a violência contra o próprio consumidor. Não é por acaso que as maiores reclamações do serviço de defesa do consumidor, há muitos anos, são contra as grandes empresas da área de telecomunicação, de audiovisual, da cultura digital.

A quantidade de escândalos mostrando a manipulação e o controle, praticamente sufocando os espaços efetivos de diálogo, de comunicação, é algo que preocupa todo mundo que observa a evolução da internet. Queremos, sim, mais liberdade, mais criatividade, mais emancipação, mas evidentemente essas coisas tendem a estar associadas a uma concentração de poder econômico, político e letal no sentido de permitir ou não às pessoas – dependendo da sua senha, do código, do ícone que se pode acessar – a sua própria sobrevivência física, que pode estar ameaçada.

Os algoritmos têm um potencial de poder, controle e vigilância maior ou mais grave do que outros instrumentos de poder usados no passado?

Não acho que seja mais grave. Ao contrário do passado, essa tecnologia atrai, uma parte do funcionamento dela, a exigência de letramento, de alfabetização. É uma nova forma de alfabetização no sentido de uma capacidade de poder lidar com as interfaces “iconômicas”. Estamos imersos num modo de consumo digital que traz em si mesmo quase que uma obrigatoriedade do indivíduo que consome de ter mais consciência do que significa aquele processo de consumo.

Fotos Usp
O economista Gilson Shwartz

Hoje, um usuário de um serviço de TV a cabo tem mais consciência do custo, do benefício, das tensões envolvidas naquele consumo, do que um consumidor de açúcar do século XVI. Há muito mais informações e, para poder consumir essas informações, é preciso estar informado, estar letrado, estar capacitado para tirar um proveito positivo disso e não ser apenas mais um numa manada que é explorada por um serviço de internet.

Numa companhia aérea tudo está na mão de algoritmos que foram desenhados com o objetivo de reduzir custos e aumentar lucros, e a ideia da companhia é que o consumidor resolva seus problemas na Justiça. Trata-se de uma ditadura da corporação que controla a informação, e o cidadão acaba sendo uma vítima de um jogo que ele é obrigado a jogar. Mas essa não é uma questão restrita à tecnologia.

A tecnologia e a informação justamente têm o potencial de nos fazer tomar consciência dessas desigualdades que expressam as assimetrias e contradições que são próprias do capitalismo e da própria história da dominação dos homens uns sobre os outros. Mas essa nova tecnologia, ao contrário de praticamente todas as anteriores, traz a questão da regulação, da confiança, da habilidade para utilizá-la.

Não é à toa que a União Europeia aprovou recentemente uma legislação muito mais rigorosa para que fique cada vez mais claro aos consumidores que compromissos, principalmente do ponto de vista da sua privacidade e intimidade, eles estão dispostos a assumir em troca dos benefícios de apertar um botão – que já é uma linguagem antiga –, de encostar o dedo num ícone e ter acesso a um filme no conforto da sua casa.

Toda a infraestrutura em volta desse “encostar no ícone” constitui uma economia política de dimensões globais, cujas leis de funcionamento estão sendo visualizadas e imaginadas, porque ao contrário das tecnologias anteriores, a característica principal da informação é exatamente a sua flexibilidade, plasticidade no sentido de que é possível, de fato, transformar um conjunto de informações em outro completamente novo.

Ou seja, fazer inovação a partir da criatividade, da liberdade. Agora, se os sistemas empresariais, universitários e de governo estabelecem regras que obedecem a algoritmos cuja lógica não pode ser questionada ou só pode ser questionada na Justiça, com processos lentos e caros, aí estamos com um problema sério. Mas esse problema não é de ordem tecnológica, mas sim política.

O senhor já afirmou que se não quisermos ser levados pela internet, mas, ao contrário, levar a internet como algo que tem sentido econômico, a solução é política e isso significa garantir padrões mínimos de acesso livre à tecnologia. Estamos caminhando nessa direção ou não? A regulação da União Europeia sinaliza o que especificamente em relação a isso?

Como sabemos, a regulação surge depois dos fatos consumados e muitos prejuízos causados. Já é normal no caso das novas tecnologias que a velocidade com que ocorre a inovação, inclusive a invenção de novos serviços e modelos de negócios, é muito superior à agilidade dos sistemas de coordenação de leis. E, no caso do judiciário, nem se fala, porque o judiciário já está assoberbado com um atraso estrutural na promoção da justiça e com um impacto tecnológico que multiplica exponencialmente a incapacidade do próprio judiciário de correr atrás desse processo. Mas todos estão correndo atrás; ninguém está ignorando o fenômeno.

O que falta é a inserção da economia política nesse tipo de inovação. A economia política não pode ser discutida independentemente da dimensão cumulativa, ao contrário da ação tecnológica tradicional, que imagina uma realidade econômica autônoma, por exemplo, do mercado, com leis próprias de funcionamento.

No caso da economia digital, da vida digital, essas distinções — mercado, Estado, público, privado, nacional, global, local — passam por uma redefinição, que é fruto da tecnologia, mas também de mudanças nas correlações de poder, que a própria comunicação provoca. Hoje um jovem se informa sobre política numa rede social. Então é outra dinâmica de formação da opinião pública, que balança a estrutura das instituições existentes. Portanto, estamos num período de transição.

No caso específico do Brasil, por ser um país cuja sociedade é altamente comunicativa, esses contrastes se manifestam com uma violência especial, tanto de quem tem poder, quanto de quem trafega no âmbito da Justiça. Felizmente vivemos há um bom tempo numa democracia e há, de fato, uma demanda por informação e educação muito grande do povo brasileiro.

O Brasil é especialmente forte na propensão a consumir informação, mas ele é especialmente fraco porque o brasileiro está mal informado, mal educado, tem pouco acesso à cultura e à própria diversidade cultural, e isso só irá favorecer o discurso de ódio e preconceito.

Na medida em que há uma desigualdade muito grande, essa contradição — muita demanda social por informação, educação e cultura versus mídia controlada, elitizada, cara e internacionalizada — deixa o país realmente em uma encruzilhada preocupante.

Mais da metade da população brasileira não tem ensino médio completo. Que tipo de internet e que tipo de “iconomia” vão se desenvolver aqui? Esta é minha preocupação: que prestemos mais atenção às cadeias associadas de fato à oferta e à demanda de informação, mas não acreditando que isso é questão de mercado, porque não é nem mercado e nem Estado, mas uma mistura entre as fronteiras para estabelecer novas fronteiras. E, nessas novas fronteiras, a exclusão é fatal.

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