Em defesa do SUS

Fechamento de unidades de saúde em São Paulo mobiliza usuários e trabalhadores

Chamada de 'reestruturação' por Doria, que alega que objetivo é ampliar o atendimento à saúde da família, proposta tem sido alvo de fortes críticas

Reprodução

Trabalhadores da UBS Jardim Tietê II receberam em fevereiro a informação de que a unidade seria fechada

São Paulo – Depois de quase cinco horas e o pronunciamento de 56 pessoas, a audiência pública, nesta terça-feira (27), que debateu as mudanças na área da saúde promovidas pelo prefeito de São Paulo, João Doria (PSDB), terminou com encaminhamentos que satisfizeram, ao menos parcialmente, as quase 500 pessoas que lotaram auditório do Ministério Público (MP) no centro da cidade. Ficou decidido que a prefeitura deve entregar, nos próximos dias, o estudo de “reestruturação” dos equipamentos de saúde que estão sendo fechados ou alterados, incluindo o impacto das mudanças na demanda do território. Também se chegou ao acordo da criação de uma comissão, integrada por representantes da sociedade civil, governo municipal, MP e entidades de classe para acompanhar a polêmica medida.

A única proposta da promotora Dora Martins não aceita pelo governo municipal foi a de suspender as mudanças até que os estudos sejam entregues e a comissão instalada. Naquele momento, ao final da audiência, a prefeitura estava representada apenas por Daniel Simões, chefe de gabinete da Secretaria Municipal de Saúde, pois o titular da pasta, Wilson Pollara, já havia ido embora. Doria também foi convidado para a audiência, mas não compareceu.

Com diversos inquéritos abertos no MP para investigar denúncias de fechamento de Unidades Básicas de Saúde (UBS) e Assistência Médica Ambulatorial (AMAs), a promotora Dora Martins reconheceu a grande insatisfação que as mudanças estão causando na população e cobrou transparência do governo nas informações do projeto. “Nós não somos contra a reestruturação. A questão é como fechar o serviço sem estudar a demanda da população”, explicou. Os inquéritos instaurados no MP investigam o fechamento da UBS Jardim Tietê I, UBS República, serviço odontológico de emergência do Hospital Santo Antônio, AMA Jaçana e AMA Tremembé.

Horas antes, no início da audiência, Dora Martins afirmou que um total de 128 unidades podem ser fechadas, de acordo com a proposta da prefeitura. Após mostrar diversas reportagens publicadas na imprensa sobre a “reestruturação” e outras sobre o investimento de R$ 550 milhões em asfalto, a promotora abriu a audiência questionando: “A vida não vale em São Paulo? O que vale mais?”.

Acesso à saúde

O grande comparecimento de homens e mulheres de diversas idades à audiência surpreendeu o próprio Ministério Público, autor da convocação. Os 250 assentos do auditório reservado para o encontro foram rapidamente preenchidos no início da tarde de terça-feira (27). Quase o mesmo número de pessoas ficou em pé e dezenas foram embora, fato interpretado pelos presentes como prova do impacto que as mudanças têm causado na população.

Muito vaiado ao chegar à audiência, o secretário municipal da Saúde, Wilson Pollara, disse ser difícil estar na situação dele e que muitos lhe aconselharam a não ir ao evento. Pollara usou trechos de portarias do Ministério da Saúde publicadas em 1996 e 2011 para enfatizar a estratégia de ampliação do programa de saúde na família. Segundo o secretário, essa é a proposta do governo municipal ao fechar AMAs e substituir UBSs.

Querendo ser didático, o secretário explicou que o SUS não reconhece e nem financia as AMAs, e que a porta de entrada do sistema são as UBSs, acompanhadas pelas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e os ambulatórios de especialidades, com “hora marcada pela UBS em até 45 dias”. Enquanto o secretário detalhava o funcionamento ideal do SUS, algumas pessoas no auditório questionavam “em qual lugar do mundo” ele se referia, ou se falava da Suíça.

Criadas em 2005 durante a gestão do ex-prefeito José Serra (PSDB), São Paulo tem hoje 114 AMAs, cujos fechamentos estão no centro da polêmica reestruturação da prefeitura. A principal crítica é que o sistema de saúde como um todo, já funciona mal e o fechamento dessas unidades trará ainda mais prejuízo para quem busca atendimento médico. Segundo o secretário, a proposta é investir na ampliação da estratégia de saúde da família, um modelo considerado mais eficaz por prevenir doenças ao invés de tratá-las depois que surgem.

Fazer tal mudança sem piorar o atendimento à população é a “grande pergunta”, segundo Eder Gatti, presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo (Simesp). Na audiência, Gatti apresentou dados de pesquisa feita pelo Simesp com os médicos que atuam na rede municipal de saúde. O resultado mostra que a maioria dos profissionais sabe das intenções da prefeitura, mas desconhece como e quando as mudanças serão feitas, além de não terem nenhuma garantia do governo municipal com relação aos seus empregos. “Existe ruído sobre a reestruturação. Os médicos não sabem nada oficial, não sabem o que vai acontecer. A discussão não deve ser se fecha ou não fecha, deve ser se será garantido acesso à saúde à população”, afirmou. “O medo é geral”, reconheceu, citando a situação de usuários e profissionais da saúde.

A falta de diálogo da gestão Doria com trabalhadores e usuários do SUS foi apontada como um sério problema do governo, responsável pelo desamparo da população e a intranquilidade dos profissionais da saúde. Ana Rosa, ex-membra do Conselho Municipal de Saúde, lembrou que o órgão emitiu uma resolução que impedia a prefeitura de promover mudanças na rede pública sem antes dialogar com o conselho. Tal decisão jamais foi aceita por Wilson Pollara. Ela ainda ponderou que a criação da AMA foi “empurrada goela abaixo” durante o governo de José Serra. “Foi um modelo do PSDB, nós não pedimos”, afirmou.

Estado Pilatos

Presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), Mauro Aranha citou diversas evidências de precarização do SUS em âmbito municipal, estadual e federal. Disse que os interesses dos planos de saúde privados estão se sobrepondo aos interesses públicos, e que esses empresários, assim como as Organizações Sociais (OS) têm representantes dentro do governo, como, por exemplo, o ministro da Saúde Ricardo Barros.

Mauro Aranha concordou com a estratégia de investir no modelo de saúde da família, pois a atenção primária e básica, segundo ele, resolve entre 70% a 80% dos casos e impede que se tornem graves. Entretanto, o presidente do Cremesp fez coro às críticas ao modo como a prefeitura de São Paulo está promovendo tais mudanças.

“Quando ouço o secretário de saúde dizer que a AMA não é financiada pelo governo federal, e que se pode melhorar o atendimento às famílias no território, isso é uma projeção. A posição do Cremesp é que se coloque isso antes do fechamento (das AMAs). Nenhuma saúde a menos. Primeiro, se ouça a população, o conselho municipal de saúde e todas as instâncias de controle social”, afirmou. Para Mauro Aranha, o Brasil está ingressando no “Estado Pilatos”, onde o poder público “lava as mãos” e deixa que o mercado resolva todos os problemas.

Durante a audiência pública, o secretário Wilson Pollara negou que esteja ocorrendo fechamento de unidades. Segundo ele, o que está em curso são mudanças de estrutura ou “de nome”. O comandante da pasta da saúde no governo Doria insistiu sempre no discurso de ampliação das equipes de médicos de família, “quem realmente acompanha o paciente, conhece ele”. Sobre as denúncias da população referentes aos equipamentos que foram fechados, Pollara foi taxativo: “Eles não sabem o que falam”.

A manifestação do secretário foi logo repudiada. “É uma mentira o que ele está falando, ele está sendo cínico. Que reestruturação? É uma mentira”, afirmou Elvira Guimarães, professora, moradora do Campo Limpo e conselheira da UBS Jardim Olinda. “Ele não tem sensibilidade com o povo, não ouve, fica lá no gabinete.”

Iris de Oliveira, auxiliar de enfermagem na UBS Tietê II, disse à reportagem da RBA que no final de fevereiro os profissionais da unidade receberam a informação do seu fechamento para “dali a 15 dias”. A notícia, dita de modo informal por uma supervisora de saúde, incluiu a informação de que a UBS seria transformada em unidade de saúde da família. A partir de então, alguns funcionários já começaram a ser remanejados para outras unidades e o fechamento não se concretizou devido ao agendamento da audiência pública.   

“Não precisa fechar a UBS, não faz sentido”, afirmou, explicando que o espaço é bem estruturado e pode receber a ampliação do serviço de saúde da família sem acabar com a UBS. “Eles fazem as coisas de qualquer jeito, é tudo feito a ‘toque de caixa’, a ‘boca pequena’. Tudo o que a população está falando é verdade”, concluiu a auxiliar de enfermagem.

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