Pacote do Veneno

Anvisa nega ter sido proibida por Temer de se pronunciar sobre agrotóxicos

Apesar das evidências, agência critica reportagem sobre recorde de novos registros e do avanço de projetos que favorecem ruralistas nas decisões sobre o mercado de venenos

CC / silvaneto cariri

São Paulo – A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), vinculada ao Ministério da Saúde, nega que tenha sido proibida de se manifestar sobre agrotóxicos pelo presidente Michel Temer (PMDB), conforme publicado pela RBA na última sexta-feira (3).

Por meio de mensagem encaminhada pela chefia da assessoria de imprensa, o órgão responsável pelo controle sanitário de produtos e serviços, insumos e tecnologias, incluindo os agrotóxicos, considera o texto “quase que inteiramente equivocado”. E afirma ainda que a reportagem trouxe “desinformações ao setor regulado e, principalmente, aos leitores da RBA“.

A agência questiona, sobretudo, o título da reportagem, que considera “causador de enorme prejuízo à sua imagem e à parceria mantida com o Ministério da Agricultura e com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, no processo de regularização de agroquímicos no país”.

Questionando as fontes consultadas e as opiniões consideradas pela reportagem na elaboração do título, a Anvisa afirma que “o presidente Michel Temer jamais deu qualquer orientação nesse sentido, seja à Anvisa, ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) ou ao Ibama. E que a informação contida na manchete, totalmente fictícia, não procede.”

A Anvisa classifica como dúbia e imprecisa a informação de que o Mapa assumiu o controle das informações sobre venenos já registrados. E de que a pasta vai excluir Anvisa e Ibama e controlar, sozinha, o registro de novos agroquímicos.

Ressaltando que cabe exatamente ao Mapa registrar agrotóxicos, afirma caber a este ministério informações sobre registros. “A Anvisa faz a avaliação toxicológica dos produtos. Ou seja: atesta se aquele agrotóxico está dentro dos padrões de segurança, qualidade e eficácia exigidos internacionalmente. Só com o aval da Anvisa, o Mapa pode decidir pelo registro de determinado produto”.

A agência nega também que tenha informado que não mais se pronunciaria sobre agrotóxicos, embora tenha orientado a reportagem a encaminhar sua solicitação de informações ao Ministério da Agricultura “por se tratar de demanda sobre registro e não sobre avaliação toxicológica desses produtos”.

A RBA reafirma entretanto que, conforme as fontes ouvidas pela reportagem – inclusive aquelas que não foram identificadas no texto publicado –, há um claro direcionamento do governo de Michel Temer para fortalecer o mercado de agrotóxicos e concentrar o controle no Ministério da Agricultura.

Tramita em regime de prioridade na Câmara o Projeto de Lei (PL) 6299, que o atual ministro da Agricultura, Blairo Maggi (PP/MT), apresentou em 2002, quando era senador. Aprovada no Senado, a proposta de Maggi teve apensados a ela 17 outros projetos de lei. Sua aprovação coloca em risco a atual legislação de agrotóxicos (Lei 7.802/89), afrouxando ainda mais a legislação e estimulando a liberação, a produção, a venda e uso dessas substâncias que têm no Brasil seu maior mercado consumidor – daí passar a ser chamado de “pacote do veneno”.

Um dos projetos inserido no pacote é o PL n.º 3200/2015, de autoria do deputado federal Luis Antonio Franciscatto Covatti (PP-RS), repudiado inclusive por promotores da 4ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal. Em agosto passado, eles divulgaram nota de repúdio por entenderem que, com a aprovação da matéria, haverá ampliação do uso e consumo desses venenos no território nacional.

Os promotores federais repudiam especialmente a alteração da nomenclatura, que deve passar de agrotóxicos para “produtos defensivos fitossanitários”. Para eles, a mudança “retira a denominação que transparece a exata noção do produto: ‘agrotóxico’. Agro, do grego, agrós (campo/agricultura) e tóxico, do grego toxikós, (‘que tem a propriedade de envenenar’). O termo ‘agrotóxicos’ delineia precisamente a nocividade ínsita ao produto.”

Além disso, segundo o documento, o termo já é amplamente difundido e conhecido pela população. E a mudança fere princípios da transparência e da informação. Sem contar que dissimula os efeitos deletérios dos agrotóxicos, mediante a utilização de um termo mais brando. E que “produto fitossanitário” confundirá a distinção entre as substâncias utilizadas nas culturas orgânicas e que não são orgânicas.

Os promotores destacam também que o Brasil vai na contramão dos países da União Europeia, que continuam utilizando a terminologia “pesticides” (pesticidas), a qual, ainda que etimologicamente não seja tão precisa quanto “agrotóxico”, remete à concepção de veneno.

Criticam ainda a proposta de criação da Comissão Técnica Nacional de Fitossanitários (CTNFito), no âmbito do Mapa, a qual ficará responsável pela apresentação de “pareceres técnicos conclusivos aos pedidos de avaliação de novos produtos defensivos fitossanitários, de controle ambiental, seus produtos técnicos e afins e indicará os 23 membros efetivos e suplentes, deixando de fora representantes dos consumidores e da Anvisa”. Um ataque, segundo eles, aos princípios da precaução e da vedação ao retrocesso.

Diante da perspectiva concreta de fortalecimento do Mapa, as fontes ouvidas entenderam o atendimento conciso e lacônico dos jornalistas da agência, neste caso reconhecido como falho pela própria chefia da assessoria que chegou a se desculpar à reportagem, como um indício de uma possível reorganização em curso na estrutura.

Tal direcionamento do governo federal, segundo os entrevistados, dispensa a publicação de um decreto ou portaria, com a assinatura do presidente Temer, publicado em Diário Oficial, proibindo, literalmente, a agência de se manifestar. Assim, o título tem respaldo na ampliação do significado dos termos utilizados no amplo contexto das mudanças em curso no bojo do “pacote do veneno”.

Omissão

Em seu posicionamento, a Anvisa refuta a “acusação de ser submissa ou omissa”. Isso porque, conforme sua assessoria, seu corpo técnico é bastante qualificado e reconhecido internacionalmente, tendo trabalhado com seriedade na questão da avaliação toxicológica de produtos agroquímicos. E que quando um produto não se encaixa em pelo menos um dos itens da Lei nº 7.802/89 – a Lei dos Agrotóxicos – recomendam seu banimento. É o caso, conforme destacou, da parationa metílica, ingrediente ativo de agrotóxico que teve banimento determinado no final de 2015.

Em novembro de 2012, porém, o então gerente-geral de Toxicologia do órgão, o agrônomo Luiz Cláudio Meirelles denunciou casos suspeitos de corrupção e irregularidades na liberação de agrotóxicos. Na época, ele chegou a contar em detalhes o episódio que levou à sua demissão. 

As fontes ouvidas pela RBA lembram que no episódio foram aprovados seis produtos que não passaram por avaliação toxicológica, que a assinatura de Meirelles foi falsificada e que os processos suspeitos desapareceram. O então gerente-geral, que havia interrompido a tramitação de processos de agrotóxicos utilizados em grandes lavouras, foi exonerado e retornou à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vinculada ao Ministério da Saúde.  

À época, a gerente de normatização e avaliação Letícia Rodrigues da Silva, subordinada a Meirelles, demitiu-se em solidariedade. Bem antes que a Anvisa começasse a investigar, o caso foi parar no Ministério Público Federal. A reportagem não obteve informações atualizadas sobre o caso.

Resíduos nos alimentos 

A informação sobre a falta de coletas de amostras de alimentos para o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para) no período de 2013 a 2015 – suprimida da reportagem poucas horas após a publicação – também é questionada pela agência reguladora. Os dados foram divulgados em novembro passado.

Conforme destacado pela assessoria, foram 12.051 amostras monitoradas nos 27 estados brasileiros e no Distrito Federal. E, pela primeira vez, houve monitoramento dos riscos agudos para a saúde, relacionados às intoxicações que podem ocorrer dentro de um período de 24 horas após o consumo do alimento que contenha resíduos.

Ao todo, foram coletadas amostras em 25 tipos de alimentos, entre eles, cereais, leguminosas, frutas, hortaliças e raízes. Em edições anteriores, as análises tinham foco em irregularidades observadas nos alimentos. Este novo tipo de avaliação, conforme a agência, é realizado na Europa, Estados Unidos e Canadá, entre outros, e considera a quantidade do consumo de determinado alimento pelo brasileiro. Sua versão final pode ser acessada aqui

A Anvisa nega também descumprir a Lei de Acesso à Informação, já que disponibiliza informações em seu site, bem como dados sobre o processo de regularização de agrotóxicos no país. E afirma que se posicionará de maneira contrária a qualquer ação que venha a colocar a saúde da população em risco.

 No entanto, em setembro passado, o Observatório de Atenção Permanente ao Uso de Agrotóxicos – Portal de Informações Interligadas sobre Agrotóxicos e seus Efeitos sobre a Saúde e Meio Ambiente, do Instituto de Matemática da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), enviou ofício à Anvisa. A coordenadora do observatório, Maria Luiza Machado Campos, aponta dificuldades no acesso às informações no site.

No caso do relatório do Para, suas tabelas não estavam acessíveis a sistemas automatizados externos em formatos abertos, estruturados e legíveis por máquina. A lista de agrotóxicos autorizados e banidos não estava disponível no portal da Anvisa de maneira direta.

Além disso, dados sobre as possíveis consequências à saúde causadas pelos agrotóxicos – que despertam grande interesse da sociedade – estão pulverizados em monografias e relatórios de avaliação, entre outros documentos.

Na ocasião, o observatório recomendou a sistematização e disponibilidade do material produzido pela agência em formatos abertos, legíveis por máquina e com licenças de uso livre, como preconizam as boas práticas dos dados abertos.