Em perspectiva

Após dois anos de pandemia, Brasil é um dos piores exemplos mundiais, diz epidemiologista

Jesem Orellana (Fiocruz) espera por “dias melhores” com o avanço da vacinação, mas critica relaxamento precoce nas demais medidas de controle da doença

Alex Pazuello/GovAM/Fotos Públicas
Alex Pazuello/GovAM/Fotos Públicas
Estudo aponta que covid-19 causou a morte a 18,2 milhões de pessoas em todo o mundo, três vezes mais que os números da OMS

São Paulo – Há exatamente dois anos, em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) classificava a pandemia de covid-19 como “pandemia” – no dicionário, o substantivo indica doença infecciosa e contagiosa que se espalha muito rapidamente e acaba por atingir uma região inteira; no caso da covid, o planeta . A China registrou os primeiros casos em dezembro de 2019. Três meses depois, o novo coronavírus já havia desembarcado em mais de 100 países. De lá pra cá, passa de 6 milhões o número de pessoas no mundo que perderam a vida para a doença, de acordo com dados oficiais.

Em função da subnotificação, no entanto, as perdas em vidas podem ser muito maiores. Estudo publicado nesta sexta-feira (11) na revista científica The Lancet aponta que a covid-19 foi responsável pela morte de 18,2 milhões de pessoas em todo o mundo, até o fim do ano passado, três vezes mais que os números da OMS.

No Brasil, o número de óbitos registrados está na casa de 655 mil. Ou seja, sozinho, o país tem cerca de 10,5% das vítimas globais da infecção, apesar de representar apenas 2,7% da população do planeta. Por aqui, o neurocientista Miguel Nicolelis também estima que o total de mortos pode chegar a até 1 milhão. O país ocupa a 15ª colocação em óbitos proporcionalmente à população, segundo a plataforma Our World in Data. O ranking macabro é liderado por Peru, Bulgaria e Bósnia e Herzegovina. Mas, em números absolutos, o Brasil perde apenas para os Estados Unidos.

O que esperar daqui para frente?

Para o epidemiologista da Fiocruz-Amazônia Jesem Orellana, o governo de Jair Bolsonaro nestes dois anos contribuiu de maneira decisiva para o fracasso do combate à pandemia no Brasil. “Foram tantos erros que é até difícil elencar”, afirmou. Atualmente os números de casos e de óbitos vem caindo, em função da vacinação, que avançou praticamente à revelia e apesar das dificuldades impostas pelo governo federal.

No entanto, somente nesta semana, mais de 5 mil mortes pela infecção respiratória foram registradas no país. Além disso, diversas capitais e estados já derrubaram o uso obrigatório de máscaras em espaços abertos.

Orellana aposta no aumento da imunização para dizer que “dias melhores” virão. Mas destaca que o surgimento de novas variantes é imprevisível. Assim, ele prega cautela nesse período de transição. “Enquanto a OMS não declarar a pandemia como controlada, não há fundamento para esses extemporâneos relaxamentos”, criticou.

Confira a entrevista:

Passados dois anos da pandemia, o que podemos vislumbrar no horizonte? Estamos mais perto do fim ou do surgimento de uma novas variantes?

Certamente, podemos esperar por dias melhores. Pois a vacinação tende a aumentar, ainda que de forma lenta e desigual, especialmente em países que resistem à vacinação ou enfrentam dificuldade no acesso aos imunizantes. Novas variantes são esperadas, mas as que chegam a ser classificadas como “de preocupação” são imprevisíveis. A BA.2 é o exemplo mais atual. Não quero imaginar o que seria da humanidade se a BA.2 ou a sua matriz tivessem vindo antes das vacinas. Creio que estamos mais perto do fim da pandemia. Mas não é seguro nem ético, para um cientista, asseverar o futuro em cenários de ampla incerteza e insensatez.

Estudo publicado hoje indica que, na realidade, a pandemia matou 18 milhões de pessoas, três vezes mais que os números apontados pela OMS. Para o Brasil é possível imaginar uma subnotificação nessas proporções?

Essas estimativas sempre têm um fundamento e é impossível negar a subnoticação de casos e mortes por covid-19. Agora, dizer que o número de mortos é três vezes maior me parece um pouco além do que vimos no mundo real, pensando em mortes diretas e não em causas de morte indiretas. Não acredito que no Brasil a subnotificação seja tão grande. Na realidade, isso vai depender muito da região e fase da epidemia.

Eu diria que, no geral, temos pelo menos 25% de subnotificação de mortes. Ou seja, se hoje temos cerca de 655 mil, muito provavelmente o número real mínimo é de cerca de 815 mil mortes específicas por covid-19. Em 2021, publicamos artigo mostrando que o número de possíveis mortes subnotificadas em importantes metrópoles brasileira era muito elevado. Com o tempo, esse número só aumentou.

Erros em série

Aqui no Brasil, o maior erro foi o governo federal ter se oposto ao distanciamento social e ao uso de máscaras, além de ter demorado na compra de vacinas? Nem sequer tivemos uma campanha massiva de vacinação da parte do ministério.

Foram tantos erros que é até difícil elencar, mas fácil de entender com cerca de 655 mil mortes confirmadas. Mas eu separaria em três componentes. Primeiro, ainda antes da pandemia chegar ao país, o Brasil deveria ter preparado uma resposta sanitária efetiva. Sobretudo no que tange à capacitação de recursos humanos, provisão de recursos e infraestrutura tecnológica e industrial.

Depois, antes das vacinas, com graves falhas em relação ao distanciamento físico e uso adequado e oportuno de máscaras, mas sobretudo da política nacional de testagem em massa, que jamais deslanchou.

Por fim, na fase vacinal, com o imperdoável atraso na celebração de contratos para a compra dos imunizantes e a incapacidade para gerar a nossa própria vacina – Cuba tem um catálogo, para todas as idades praticamente. Além disso, erros graves na organização precoce da campanha nacional de vacinação e vexatória falta de habilidade para distribuir vacinas de forma oportuna e efetiva, respeitando cenários sanitários prioritários e não fazendo uso político dos imunizantes.

Sobre as máscaras, acredita que vieram para ficar ou em pouco tempo serão abandonadas por completo?

Vieram para ficar. Mas não como vemos as pessoas usando óculos ou um chapéu, por exemplo. No entanto, pessoas em maior risco de óbito certamente terão que usar essa proteção por muito tempo. Assim como aqueles que gozam de bom senso e têm respeito pelo próximo.

Heranças e perspectivas

E o maior legado no campo científico, são as vacinas de RNA?

Não sei se especificamente essa promissora plataforma tecnológica é o principal legado. Talvez seja a capacidade de gerar conhecimento de forma coordenada e em curto espaço de tempo, típico de momentos de crise.

Outro aspecto importante, pensando no caso do Brasil, foi a valorização e o reconhecimento da capacidade de resposta do Sistema Único de Saúde (SUS) frente aos múltiplos desafios pandêmicos. Isso tudo apesar dos insensatos e criminosos cortes dos últimos anos, via “PEC da Morte” (EC 95, que limita o teto de gastos públicos). Espero que esses cortes sejam revertidos pelo próximo governo, pois precisamos de qualidade de vida, e não de armas. Nem de banqueiros achando que desigualdades sociais e sanitárias são superadas com especulação.

Nesse momento, já é possível considerar haver uma certa normalidade? Quais cuidados ainda são indispensáveis?

Na prática, o governo federal está forçando, há semanas, para declarar o problema sanitário atual como endemia. Mas, não é o que os dados mostram. Ainda temos muitas pessoas adoecendo gravemente e morrendo por covid-19. Para os não vacinados com menos de 12 anos, por exemplo, estamos tendo mais mortes, ou quase a mesma quantidade, que nos piores momentos de 2021.

Deveríamos ser mais cautelosos, pois podemos estar saindo de uma onda para entrar em outra. Embora isso seja pouco provável. Enquanto a OMS não declarar a pandemia como controlada, não há fundamento para esses extemporâneos relaxamentos, sobretudo em países que lidaram tão mal com o gerenciamento do espalhamento viral.

E o Brasil, é um dos piores exemplos mundiais. Os cuidados seguem sendo os mesmos: uso correto de máscaras, higienização das mãos, evitar aglomerações e, sobretudo, vacina em dia. Mas sem esperar que, sozinhas, as vacinas vão fazer milagre.


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