Xô, negacionismo

Não há número ‘aceitável’ de mortes de crianças pela covid-19 tendo vacina disponível

Para o médico do SUS Pedro Tourinho, especialista em medicina preventiva, o Brasil já vive uma nova onda de covid que não se agrava mais graças à vacinação

Opas-OMS
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"É intolerável que a gente veja, mais uma vez, o governo federal alimentando a pauta negacionista, a pauta antivacina. E o setor pediátrico é um setor que está particularmente despreparado pra enfrentar essa pressão que pode vir", avalia o médico Pedro Tourinho

São Paulo – Desde a suposta “invasão hacker” ao site do Ministério da Saúde, os números de casos e mortes causados pela covid-19 seguem caindo. Assim, o Brasil pode parecer uma ilha da fantasia em meio à onda mundial de contagiados pela mais recente variante do coronavírus: a ômicron. Mas um simples olhar para o lado permite saber que os dados não correspondem à realidade. É difícil encontrar alguém que não tenha familiares ou amigos contaminados pela covid-19. Somados aos assintomáticos, fica claro que o Brasil está mergulhado em mais um boom de adoecidos. A situação só não é pior graças a um dos mais avançados programas de imunização do mundo, o PNI. Mesmo combalido há cinco sem campanhas, deve-se ao PNI brasileiro e à vacina contra a covid o número reduzido de casos graves e mortes nessa nova onda causada pela ômicron.

Para quem está na linha de frente dos atendimentos nos hospitais públicos, no entanto, a situação é preocupante. É o caso do médico Pedro Tourinho, que atua num centro de atenção básica à saúde, na periferia de Campinas (SP). Em entrevista à Rede Brasil Atual, Tourinho fala sobre a drástica mudança no atendimento nas últimas semanas. “Dei plantão no Natal, no dia 26 e trabalhei na linha de frente essas semanas todas que se passaram. Mudou drasticamente. Tava uma paz no começo de dezembro, agora tem atendimentos intermináveis de pessoas com sintomas respiratórios, com fila, demora e tudo. Felizmente pouquíssimos casos graves”, afirma.

Crianças em risco

Sem esclarecimentos e com números encantadores, mas enganadores, os brasileiros estão ignorando regras básicas capazes de evitar o contágio, como o distanciamento social e o uso de máscaras.

Diante desse quadro, Tourinho alerta para a importância da vacina contra a covid para as crianças, outra medida urgente protelada pelo governo Bolsonaro e seu ministro da Saúde, Marcelo Queiroga. “A covid está certamente aumentando muito. A ômicron já é predominante em boa parte do país. Uma variante incrivelmente transmissível e que contamina e causa adoecimento mesmo em pessoas com duas e até três doses. A realidade de alto número prévio de casos associada à cobertura das vacinas tende de fato a produzir quadros muito mais leves, além de uma aparente gravidade menor dos casos produzidos pela variante quando comparados à delta.

Ainda assim, mesmo que em menor proporção, as mortes tendem a aumentar e tanto as crianças quanto as pessoas não vacinadas se encontram em risco mais alto nesse contexto. Estou muito preocupado com a onda que virá após essas festas de fim de ano. Há dados que sugerem que há risco maior da ômicron para a população infantil que as outras variantes.”

Sanitarista, especializado em medicina preventiva e professor de saúde da família no curso de Medicina da PUC Campinas, Pedro Tourinho avalia que mesmo diante da pressão produzida pela epidemia de gripe causada pelo H3N2, o sistema de saúde não deve viver o colapso de 2020 e início de 2021. O que não quer dizer que não haverá pressão sobre o sistema que, como reforça Tourinho, está “agonizando” por falta de investimentos. Leia a entrevista na íntegra.

covid vacina
Ministro da Saúde minimiza mortes de crianças e atuação negligente do governo em relação a vacina contra covid

“O fato é que a vacina contra covid está disponível e em se tratando, como é, de uma vacina muito segura para a proteção das crianças, nós não podemos tolerar nenhuma situação que signifique vidas perdidas”


A vacina para crianças contra a covid-19 é importante para ajudar nessa situação em que duas epidemias estão se encontrando? Qual a gravidade dos casos nas crianças?

O Brasil já tem mais de 2 mil crianças e adolescentes cujas vidas foram perdidas para a covid-19. Isso é um número muito alto. A gente não pode dimensionar o que significa isso. Ah, percentualmente é um número baixo, como o ministro genocida falou, o Queiroga. O fato é que a vacina contra covid está disponível e em se tratando, como é, de uma vacina muito segura para a proteção das crianças, nós não podemos tolerar nenhuma situação que signifique vidas perdidas. Não tem número aceitável de mortes de crianças pra covid-19 no Brasil tendo vacina disponível. É intolerável que a gente veja, mais uma vez, o governo federal alimentando a pauta negacionista, a pauta antivacina.

E o setor pediátrico é um setor que está particularmente despreparado para enfrentar essa pressão que pode vir. Isso tem de ser debatido desde já. O governo federal não pode protelar a vacinação das crianças. Isso vai produzir uma catástrofe com muitas vidas de crianças perdidas ou comprometidas desnecessariamente, como já aconteceu com  a vida do povo brasileiro de modo geral, quando Bolsonaro se recusou a comprar as vacinas no tempo certo.

O  governo teria de ter abraçado essa questão da vacina contra covid com urgência, mas não fez isso. Não fosse a gigantesca pressão social produzida pela catástrofe da covid-19, a existência da CoronaVac como vacina alternativa produzida por um governo adversário do Bolsonaro, provavelmente a gente teria tido ainda mais lentidão na aquisição. O que é escandaloso, porque o Brasil teve acesso desde sempre às primeiras levas de vacinas produzidas no mundo.


“A ômicron é muito contagiosa, produz casos sintomáticos em pessoas que estão plenamente vacinadas ou que já tiveram covid e vacinaram depois, ou que não vacinaram. A expectativa com a circulação da ômicron no país é o aumento no número de casos”


Os números de casos da covid-19 seguem baixando, apesar de tanta gente estar adoecendo. A que se atribui essa queda nos dados oficiais?

Primeiro é essa situação que já dura um período longo de crise nos sistemas de informação. É um escândalo o governo não ter conseguido proteger ou recuperar num tempo razoável dados sobre adoecimento por covid no Brasil. Isso propiciou condições para uma subnotificação. Segundo é que o Brasil testa pouco e mal. Então, a gente demora para ter a real situação da covid-19 no país.

Um dos índices que a gente costuma ver antes do aumento no número de casos é o aumento no número de internações, o que em tese é um indicador que surge mais tardiamente e não precocemente. Mas é como infelizmente a pandemia se desenrolou no Brasil. Outro fator: é fato concreto que temos uma excelente cobertura de vacinas contra a covid-19. Essa alta cobertura, associada às milhares de pessoas que tiveram covid e se vacinaram depois, produz uma proteção muito substancial, e serve como uma barreira muito efetiva contra a disseminação de casos no Brasil.

A epidemia de gripe pode estar “maquiando” casos de covid causados pela ômicron?

A ômicron é uma variante muito contagiosa, que produz casos sintomáticos em pessoas que estão plenamente vacinadas ou pessoas que já tiveram covid e vacinaram depois, ou que não vacinaram. A expectativa com a circulação da ômicron no país é o aumento no número de casos. A intensidade desse aumento é impossível de prever, mas vai acontecer. Se a gente está tendo uma situação maquiada, é difícil afirmar. Existem vários quadros virais respiratórios que estão ocorrendo de forma concomitante no país nesse momento, como é o caso de influenza, rinovírus. Mas de todos esses a covid-19 na variante ômicron é a mais transmissível.


“A gente pode dizer que num quadro como aquele do final de 2020 o sistema de saúde já não deu conta e jamais, nas condições atuais, daria novamente”


Como está o sistema de saúde pública? Ele aguentaria uma nova onda de casos de covid-19 – ainda que com menor gravidade – somada aos casos de gripe?

O sistema de saúde brasileiro está há um bom tempo agonizando. A Emenda Constitucional 95, do tetos dos gastos, é um garrote no pescoço estrangulando o SUS desde 2017 e que não foi interrompida. Ao contrário, a turma do governo federal, o Paulo Guedes (ministro da Economia) apoia, aplaude, defende essa medida que inviabiliza o SUS como um sistema de qualidade que atende as pessoas da maneira como é devido.

Mas nem o SUS, nem o sistema privado deram conta das ondas anteriores. Tivemos o colapso do sistema de saúde em duas ocasiões muito nitidamente. Tanto na onda que veio no ano de 2020, quanto na onda produzida pela variante gama que começou a se espalhar pelo Brasil em dezembro de 2020 e produziu no primeiro semestre de 2021 um dos piores quadros da covid de que se tem notícia no planeta. Com colapso em todos sistema estaduais de saúde, todos os municípios, uma catástrofe com centenas de milhares de vidas perdidas.

A gente pode dizer que num quadro como aquele o sistema já não deu conta e jamais, nas condições atuais, daria novamente. O que nós temos de proteção contra a repetição dessa situação que faz com que seja muito improvável que a gente vivencie isso de novo: a alta taxa de cobertura vacinal que sem dúvida nenhuma protege nossa população coletivamente. E mesmo os casos de covid-19 tendem a ser cada vez mais leves, com menos necessidade de internação, menos gravidade. E isso mesmo com a variante ômicron que tem essa capacidade de evasão imunológica, escape vacinal. É o que a gente espera.


“As vacinas foram feitas para enfrentar o vírus original, mas estão cumprindo belíssimo papel contra as novas variantes que vêm surgindo”


Tomar vacina contra a gripe pode ajudar, mesmo sendo essa vacina indicada para H1N1 e não para essa cepa do H3N2?

Ajuda sim. A vacina da gripe não é só contra um subtipo de influenza. Ela é para dois subtipos de influenza A e dois tipos de influenza B. A gente tem expectativa de que produza imunidade cruzada e tenha pelo menos uma proteção parcial contra a variante que está circulando. Mas isso não está ainda confirmado. As formas de proteção muita vezes não são específicas, mas podem ajudar com as variantes que surgem, como é o caso da covid-19. As vacinas foram feitas para enfrentar o vírus original, mas estão cumprindo belíssimo papel contra as novas variantes que vêm surgindo.

A falta de vacina para essa nova cepa da gripe pode ser responsável pela força do vírus que tem assustado e acamado tanta gente?

Temos um problema de cobertura vacinal contra a gripe que foi baixa nesses últimos anos. O foco na covid teve um papel nisso. Mas a fragilização das campanhas de vacinação e do próprio SUS acabou produzindo uma baixa cobertura vacinal contra a gripe, Assim isso pode ter uma contribuição para que se tenha agora um pouco mais de dificuldade diante do que a influenza pode trazer. Claro que não estamos falando de nada que se aproxime, mesmo que discretamente, da covid-19 em plena potência como vimos no primeiro semestre de 2021. Porque aquilo foi uma coisa terrível, com alta capacidade de destruir vidas, o sistema de saúde.

Mas ainda assim se trata de uma doença importante, que se dissemina muito e provoca casos muito sintomáticos e debilitantes. E que também, especialmente na população de crianças menores de 2 anos e na população com mais de 60 anos potencial para casos graves e fatais.


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