História contaminada

Pequim aponta para ‘manipulação política’ em investigações sobre origens da covid-19

Estudos internacionais e a China apontam para origens diferentes do que é disseminado pelo senso comum

NIAID
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"Quando o paciente zero começou nos EUA? Quantas pessoas estão infectadas? Quais são os nomes dos hospitais? Pode ser que o Exército americano tenha levado a epidemia a Wuhan", aponta autoridade chinesa

São Paulo – A Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou nesta semana a criação de uma nova equipe para investigar as origens da covid-19. Em uma investigação preliminar, a entidade apontou que dados foram inconclusivos. Entretanto, a OMS voltou os olhares apenas para a China, enquanto o governo de Pequim, por sua vez, alega “manipulação política” do vírus. O país asiático afirma que não existem evidências de que o país tenha sido epicentro inicial da pandemia, e expõe fundamentos.

A China foi o primeiro país a alertar o mundo sobre a covid-19, pois foi na cidade de Wuhan, na província de Hubei, no fim de 2019, que o vírus foi identificado por autoridades sanitárias. Na ocasião, o governo adotou rapidamente medidas fortes para conter o vírus. Como resultado, o país de 1,4 bilhão de habitantes tem apenas 4.636 mortes registradas. Por ter sido pioneiro na adoção de políticas de isolamento social e de investigação sobre o novo vírus, a comunidade internacional, automaticamente, apontou para o gigante asiático como local da origem da covid-19.

Conspiração e preconceito

Junto do pré-julgamento vieram as conspirações internacionais e a sinofobia. No Brasil, o segundo país com mais mortes pelo vírus no mundo, com mais de 600 mil vítimas, o presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores bradam “vírus chinês”, enquanto apontam para discursos preconceituosos. O mesmo ocorreu nos Estados Unidos, país com mais mortes pelo vírus no mundo, mais de 700 mil.

O governo chinês afirma, em contraponto, que apoia iniciativas imparciais de investigação. “A China vai continuar a apoiar e participar do rastreamento científico global, mas se opõe firmemente a qualquer forma de manipulação política. Esperamos que todas as partes interessadas, incluindo o diretor da OMS e o grupo consultivo, mantenham uma atitude científica objetiva e responsável”, disse o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China, Zhao Lijian, em coletiva concedida na última semana.

Inicialmente, a China foi acusada de omitir dados sobre a gravidade da doença, cobrança considerada exagerada pelo país. Isso porque o país também enfrentava um desafio inédito e não havia como saber ao certo do que se tratava em tão pouco tempo, algo como um mês de antecedência, conforme cobrado por autoridades internacionais. A partir da diplomacia chinesa em busca de isonomia nas investigações, mais de 70 países concordaram com a ampliação de uma investigação justa.

Paciente zero

Um levantamento global do Grupo de Mídia da China (CMC) apontou que 83% dos cidadãos entrevistados defendem uma investigação imparcial sobre as origens da covid-19. Estudos evidenciam a presença do vírus em diferentes países antes da China, entre eles, Itália e Estados Unidos. Uma das suspeitas levantadas por Pequim é de que o vírus teria sido portado por norte-americanos em um evento militar realizado em meados de 2019 em Wuhan.

“Quando o paciente zero começou nos EUA? Quantas pessoas estão infectadas? Quais são os nomes dos hospitais? Pode ser que o Exército americano tenha levado a epidemia a Wuhan. Sejam transparentes, torne públicos seus dados. Os EUA nos devem uma explicação!”, disse o porta-voz Lijian.

De fato, um levantamento do Centro de Controle de Doenças (CDC), órgão de controle do governo norte-americano, apontou a presença do novo coronavírus no país no início de dezembro, antes do primeiro caso na China, reportado dia 31 de dezembro; e muito antes do primeiro caso oficial nos Estados Unidos, em 19 de janeiro de 2020. “A presença desses anticorpos indica que infecções isoladas de Sars-CoV-2 podem ter ocorrido na Costa Oeste dos Estados Unidos antes do que se reconhecia anteriormente”, escreveram cientistas do CDC em artigo publicado no periódico científico Clinical Infectious Diseases.

Vírus italiano?

O CDC também publicou outro estudo que apontou para a presença do vírus na Itália no dia 21 de novembro, mais de um mês antes do primeiro caso chinês. A pesquisa foi realizada por cientistas da Universidade de Milão, que confirmou diagnóstico positivo em novembro de 2019 em um menino de quatro anos. Na época, os médicos disseram que não conseguiram identificar qual vírus era responsável pelos sintomas respiratórios da criança. Entretanto, investigação posterior apontou para anticorpos do Sars-Cov-2. “A disseminação de longo prazo e não reconhecida do coronavírus no norte da Itália ajudaria a explicar, pelo menos em parte, o impacto devastador e o curso rápido da primeira onda de covid na Lombardia”, apontaram os cientistas.

Ironicamente, não seria a primeira vez que o surgimento de uma pandemia seria atribuída de forma injusta a um país. A gripe espanhola de 1918 não começou na Espanha, e sim nos Estados Unidos, com a criação de suínos. Assim, com a censura de jornais locais, a imprensa espanhola foi a primeira a noticiar as mortes, o que levou o mundo a adotar o nome do país.

Origens da covid-19 e o futuro

A necessidade de encontrar as origens da covid-19 é apontada por cientistas como essencial para crises futuras. A ideia é tentar andiantar esforços de contensão e criar protocolos mais eficientes em escala global. A OMS argumenta que “é questão de tempo” para um novo surto com potencial para provocar tragédias similares. “O surgimento de novos vírus com potencial para desencadear epidemias e pandemias é um fato da natureza e, embora o SARS-CoV-2 seja o vírus mais recente, não será o último”, afirmou nesta semana o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom.

Para essa nova rodada de investigações que, espera-se, ser mais imparcial, serão 26 cientistas de diferentes países selecionados pela OMS para coordenar os esforços. “O chamado Grupo de Aconselhamento Científico da OMS para as Origens de Novos Patógenos (SAGO, na sigla em inglês) será composto por profissionais de áreas como epidemiologia, saúde animal, medicina clínica, virologia e genômica. Entre os especialistas selecionados está o brasileiro diretor do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Dr. Carlos Medicis Morel”, aponta em nota a ONU.


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