Totalmente distintos

Vírus ou protozoário? Especialistas esclarecem ‘polêmica’ da CPI da Covid

Após médica bolsonarista Nise Yamaguchi mostrar não saber as diferenças entre os dois organismos,Sociedade Brasileira de Protozoologia (SBPz) esclarece a questão definitivamente

Leopoldo Silva/Agência Senado - CC.0 Creative Commons
Leopoldo Silva/Agência Senado - CC.0 Creative Commons
Nise Yamaguchi não soube dizer a diferença entre vírus e protozoários. SBPz responde: "São entidades absolutamente distintas sob qualquer ponto de vista biológico." Na imagem, o Sars-Cov-2, causador da covid-19

São Paulo – O depoimento da médica bolsonarista Nise Yamaguchi à CPI da Covid, na terça-feira (1º), pode ser resumido em dois pontos: sua defesa política do uso da cloroquina para o tratamento da infecção e a inconsistência de sua resposta ao questionamento do senador Otto Alencar (PSD-BA), que também é médico, que quis saber se ela saberia dizer a diferença entre os organismos vírus e protozoário.

A respeito do primeiro ponto, a ciência, por meio de diferentes estudos reconhecidos por órgãos internacionais, já comprovou que a cloroquina, assim como seu composto, a hidroxicloroquina, não tem efeito contra o vírus. Esse debate, aliás, já está superado na maior parte do mundo, que já aboliu o chamado “kit covid”, composto também pela ivermectina dos protocolos médicos de combate à doença causada pelo novo coronavírus.

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O segundo ponto chamou particularmente a atenção, por mostrar o despreparo da oncologista sobre princípios da biologia e da infectologia. Otto Alencar, que é membro da CPI da Covid, dirigiu uma pergunta aparentemente simples para quem tem formação em medicina: “qual a diferença entre vírus e protozoário?”. A relevância da questão vem justamente da defesa intransigente da cloroquina pelo governo de Jair Bolsonaro e seus apoiadores. O composto é utilizado há décadas para combater protozoários, como o causador da malária.

Entretanto, vírus, como o causador da covid-19, são estruturas diferentes, tratados com medicamentos chamados justamente de antivirais. É o caso do oseltamivir (conhecido pelo nome comercial Tamiflu). Os bolsonaristas, como Nise, defendem o uso offlabel (sem reconhecimento comprovado e descrito em bula) da cloroquina para tratamento da covid. Alegam que o Tamiflu foi utilizado contra a gripe H1N1, que atingiu o Brasil em 2009, mesmo sem sua bula não trazer a informação sobre a eficácia do oseltamivir contra aquele vírus. Entretanto, diferentemente da cloroquina. o remédio é um antiviral, já utilizado para tratar outros vírus da mesma família.

Resposta rasa

Para esclarecer definitivamente a “polêmica” surgida na CPI da Covid, a Sociedade Brasileira de Protozoologia (SBPz) divulgou durante a semana um comunicado técnico sobre as diferenças entre vírus e protozoários. Além disso, os cientistas teceram críticas sobre a participação de Nise Yamaguchi na CPI da Covid. “Embora correta (a resposta da médica), dentro dos limites dos conceitos usados (vírus podem ter material genético composto por DNA ou RNA, protozoários são unicelulares), foi considerada por muitos insuficiente, ainda mais vindo de alguém que defende com ardor o uso de um medicamento usado contra protozoários (…) para tratar uma doença viral como a covid-19”, afirma a nota.

As diferenças

Protozoários

Protozoários são organismos unicelulares, ou seja, possuem uma única célula. Está tem uma configuração complexa, com organelas e estruturas que executam diferentes funções. Protozoários realizam todas as funções de um ser vivo, como alimentação, metabolismo, excreção, reprodução e movimento.

“Esse grupo de organismos (protozoários) mantém seu material genético individualizado dentro de uma organela denominada núcleo”, explica a SBPz. “São exemplos de protozoários, inúmeros organismos capazes de provocar doenças, como as espécies do gênero Plasmodium, causadores da malária, e do gênero Trypanosoma, causadores do mal de Chagas”, completa.

Embora alguns possam provocar doenças, não é isso que define o grupo protozoa. “A diversidade natural destes organismos é enorme, e inclui inúmeros membros de vida livre (isto é, que não requerem um organismo hospedeiro e não atuam como parasitas), como as amebas e os ciliados, apenas para citar alguns”, prossegue o comunicado da entidade

Vírus

Já os vírus não possuem núcleo organizado. Em vez disso, são compostos por material genético disperso em um invólucro proteico. “Os vírus, por outro lado, não são organismos celulares, e muito menos nucleados. Não têm a membrana típica das células, nem suas estruturas moleculares internas. Os vírus, ao contrário dos protozoários, são incapazes de executar as funções típicas dos seres vivos – fora de seus hospedeiros, não mantêm nenhuma atividade fisiológica. Pelo contrário, dependem da célula do organismo hospedeiro para que tais funções sejam executadas – são, portanto, endoparasitas (isto é, parasitas internos) obrigatórios”, esclarece a SBPz.

Por fim, os cientistas lembram que vírus e protozoários apresentam diferenças importantes também evolutivamente. “Não há parentesco evolutivo próximo entre os organismos tradicionalmente referidos como protozoários e os vírus. São entidades absolutamente distintas sob qualquer ponto de vista biológico.”

Estruturas modelo de um protozoário (esquerda) e um vírus. Creative Commons

A nota da SBPz é assinada pelos cinco membros da diretoria: Lucile Floeter-Winter, atual presidente da Sociedade Brasileira de Protozoologia (SBPz) e professora titular do Instituto de Biociências da USP; Luís Carlos Crocco Afonso, presidente-eleito SBPz) e professor associado do Instituto de Ciências Exatas e Biológicas da Universidade Federal de Ouro Preto; Maria Carolina Elias-Sabbaga, vice-presidente da SBPz e diretora-chefe do Laboratório Especial de Ciclo Celular do Instituto Butantan; Daniel Lahr, tesoureiro da SBPz e professor associado do Instituto de Biociências da USP; e Renata Tonelli, secretária da SBPZ e professora associada do Instituto de Ciências Ambientais, Químicas e Farmacêuticas da USP.