Nas sombras

‘Gabinete paralelo’ de Bolsonaro teve presença de conselheiros do CFM

Órgão de fiscalização do exercício da Medicina no Brasil, CFM é alinhado às políticas sanitárias do presidente Bolsonaro

Marcos Corrêa/PR
Marcos Corrêa/PR
Luís Guilherme Teixeira dos Santos e Annelise Mota de Alencar Meneguesso (segundo e terceira da esquerda para a direita) são integram o Conselho Federal de Medicina (CFM)

São Paulo – Uma reunião do chamado gabinete paralelo de Jair Bolsonaro, em 8 de setembro passado, contou com a participação de dois integrantes do Conselho Federal de Medicina (CFM). Mencionado pelos ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, o gabinete é alvo de investigação pela CPI da Covid.

De acordo com o portal UOL, a endocrinologista Annelise Mota de Alencar Meneguesso, conselheira pelo estado da Paraíba, e o urologista Luís Guilherme Teixeira dos Santos, pelo estado do Rio de Janeiro, falam em um vídeo divulgado no perfil de Bolsonaro no Facebook em setembro. No entanto, veio a público na última sexta-feira (4), pelo portal Metrópoles.

Ao começar a falar, Annelise se apresenta – e a Luís Guilherme – como conselheiros federais do órgão de fiscalização da prática médica no Brasil.

O encontro que Bolsonaro chamou de “audiência com o movimento Médicos pela Vida” reuniu profissionais da saúde. Sem máscaras em ambiente fechado, defenderam o uso de medicamentos comprovadamente ineficazes no tratamento da covid-19, como cloroquina e ivermectina.

Reunião do gabinete paralelo

“A gente falou aqui o nome de muitas drogas, mas a gente tem que sempre frisar que o atendimento é sempre mais importante do que droga A ou droga B. A gente não quer fazer apologia a nenhuma droga, mas a gente quer que o paciente tenha o direito de ser diagnosticado precocemente e ter seu tratamento instituído precocemente”, disse a médica.

Já Luís Guilherme disse que há milhares de médicos ao lado do presidente lutando contra “um sistema”. “Hoje eu vejo para cada uma dessa pessoas que estão aqui e tantas outras que já passaram, presidente, estão lutando ao lado do senhor. Nós temos hoje dezenas, milhares de médicos que estão lutando contra um sistema que foi dado, e esse sistema é contra a vida, contra as pessoas, contra a sociedade. Nós médicos aqui hoje somos médicos de verdade”, afirmou.

A vacina chegou a ser contestada por alguns deles, como o virologista Paolo Zanotto, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP). Foi ele que sugeriu, na mesma reunião, a criação de um “shadow cabinet”, um gabinete das sombras. “Esses indivíduos não precisam ser expostos, digamos assim, à popularidade”, defendeu. Estava batizado o gabinete paralelo de Bolsonaro.

Zanotto, que participou de diversas lives na época em defesa da cloroquina, até então tinha seu nome associado ao da universidade em que trabalha, mas foi publicamente desautorizado. “As colocações feitas pelo docente são de sua inteira responsabilidade e não representam uma posição institucional. Nenhuma pesquisa relacionada aos resultados relatados pelo pesquisador foi ou está sendo conduzida nas dependências do ICB ou da USP. O ICB reafirma seu compromisso com a ciência e a ética em pesquisas relacionadas à epidemia de Covid-19”, disse comunicado oficial divulgado na época.

Participaram ainda, entre outros, a imunologista Nise Yamaguchi, que depôs à CPI, e o deputado federal terraplanista Osmar Terra.

Conselho alinhado a Bolsonaro

Conforme o UOL, o CFM afirmou em nota desconhecer a existência da reunião. E que a participação dos dois médicos conselheiros é de “inteira responsabilidade dos envolvidos” (leia nota no final da reportagem).

O conselho paralelo de Bolsonaro é alinhado às pautas defendidas pelo ex-capitão, especialmente no endosso para que médicos prescrevam “tratamentos precoces”, ou seja, o uso de cloroquina e outras drogas contra a covid. Ao contrário de outras sociedades médicas, o CFM reitera a defesa de que a decisão pelo uso dos medicamentos é individual do médico e do paciente.

Bolsonaro já publicou vídeo com o presidente da entidade, Mauro Ribeiro, atacando governadores do Nordeste que defendiam trazer médicos estrangeiros para ajudar na linha de frente dos hospitais na pandemia.

Ambos são muito próximos. Tanto que o CFM se omitiu sobre a compra de vacinas contra a covid-19. E só publicou apoio aos imunizantes após pressão da opinião pública e de uma carta assinada por cerca de 20 médicos, ex-presidentes e ex-conselheiros do CFM. A carta pedia que o conselho se manifestasse a favor das vacinas e contra os tratamentos alternativos para covid-19.

A entidade foi uma das responsáveis pela divulgação de informes publicitários favoráveis ao tratamento precoce em oito jornais do país em fevereiro deste ano. A história foi revelada pelo jornal O Estado de S. Paulo.

“Médicos pela Vida”

Ao UOL, os médicos Annelise Meneguesso e Luís Guilherme Teixeira disseram que foram convidados pelo movimento Médicos pela Vida, e que não representavam o CFM, apesar de terem se identificado como conselheiros federais.

“Não fomos pelo Conselho Federal de Medicina. Mas, na hora, em virtude do que estava sendo falado, uma vez que a transmissão foi pública, sentimos a obrigação de defender o parecer 04/2020, que defende a autonomia do médico de prescrever (ou não) o que achar necessário ao seu paciente”, disse Annelise Meneguesso ao UOL.

“Meu cargo como conselheira federal suplente é indissociável à minha pessoa, mas eu não estava pelo CFM. Estava como convidada do Movimento Médicos pela Vida”.

Luís Guilherme também disse ter sido convidado pela mesma associação. “Minha presença foi pessoal e por acreditar que o presidente pudesse ouvir quem trabalha na ponta atendendo as pessoas, respeitasse a autonomia do médico e pudesse melhorar os cerceamentos que muitos médicos estavam e estão ainda sofrendo nos municípios”.

E chamou de “obra de ficção” a existência do gabinete paralelo de Bolsonaro. “As pessoas que ali estavam naquele dia foram para lá numa tentativa de mostrar o lado do médico, sem nenhuma ingerência sobre o Executivo. Eu desconheço que tenha tido algum tipo de intenção em assessorar direta ou indiretamente o presidente. A reunião foi feita por médicos, em sua maioria, altruístas e com desejo de ajudar o país”, concluiu.

Argumentos negacionistas

Segundo o portal Marco Zero, o grupo que forma o gabinete paralelo de Bolsonaro não se intimidou com a CPI da Covid. E saiu na dianteira, abrindo abaixo-assinado dias antes do início dos trabalhos dos senadores. Nele, repete o rosário de argumentos negacionistas dos aliados de Bolsonaro em relação à pandemia de covid-19.

Ao Marco Zero, a médica Camila Boff, da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, disse que não se trata da defesa da autonomia médica pelo CFM. “Existe para cada doença algumas alternativas de tratamento que são eficazes e, dentro dessas alternativas, posso selecionar o que vai funcionar melhor. Isso é que é a autonomia médica. E não selecionar algo que possa fazer mal ou que não tem efeito bom para o paciente. Isso é mais próximo do erro médico do que qualquer outra coisa”.

A médica avalia como um retrocesso a falta de posicionamento do CFM. “O grupo dos Médicos Pela Vida foi o grande responsável por difundir a prescrição do tratamento precoce entre os médicos. O conselho, enquanto entidade federal, apoia esse grupo, já que representantes dos conselhos participam dos eventos. É algo que choca. Porque há muitos anos se usa a medicina baseada em evidências, com uma uniformidade de entendimento mundial que não tínhamos há 50, 100 anos atrás. E aqui temos um governo que colocou o ‘eu acho’ acima de tudo que estava se estudando e um Conselho Federal de Medicina que assinou embaixo”, criticou, em entrevista ao Marco Zero.

Leia a nota do CFM na íntegra

“O Conselho Federal de Medicina (CFM) desconhece a existência dessa reunião. Caso tenha ocorrido, nunca houve convite formal ou indicação de representação pelo CFM para participação em encontros desse tipo.

A eventual participação, portanto, é de inteira responsabilidade dos envolvidos. O CFM não autoriza qualquer médico, seja conselheiro ou não, a falar em nome da autarquia, salvo quando houver indicação oficial.

Todos os convites institucionais recebidos pelo CFM são analisados pela presidência, que é responsável pela indicação oficial de representantes, quando é o caso.

O CFM reitera ainda que, desde o início da pandemia, tem incentivado e apoiado ações que visam a proteção da sociedade contra a covid-19.

Entre elas, estão o distanciamento seguro entre as pessoas, o uso de máscaras e o reforço à higienização (lavagem das mãos e emprego do álcool gel), assim como a vacinação em massa dos brasileiros, no menor espaço de tempo possível”.


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