Tragédias humanitárias

Mortes pela covid-19 no Brasil superam em um ano as de 10 anos de guerra na Síria

Em 13 meses, país perde 389 mil vidas pelo descaso do governo Bolsonaro. E em breve ainda pode faltar vacina

Alexandro Auler/Revista do Brasil (jun/2015) / Alex Pazuello/SemCom
Alexandro Auler/Revista do Brasil (jun/2015) / Alex Pazuello/SemCom
Em 2020, foram registradas 88 mil mortos no conflito sírio. No mesmo período, a covid-19 matou 279 mil brasileiros

São Paulo – A guerra na Síria foi iniciada em 15 de março de 2011. Trata-se do conflito de maior projeção global e com maior letalidade dos últimos anos. De acordo com o Observatório Sírio dos Direitos Humanos (OSDH), a guerra civil já deixou ao menos 387 mil mortos. A marca trágica das mortes causadas em 10 anos de guerra na Síria acaba de ser superada por outra triste marca: a de mortos pela covid-19 no Brasil em 13 meses de pandemia. Neste sábado (23), após 3.076 óbitos em 24 horas, o país registrou 389.942 mortes acumuladas desde o primeiro caso letal, em 17 de março do ano passado, associado ao novo coronavírus. Com 71.137 novos casos de covid-19 em um dia, passa de 14,3 milhões o total de brasileiros infectados.

Subnotificação

A OSDH contabiliza 117 mil civis mortos, sendo 22 mil crianças. Combatentes do governo de Bashar al-Assad somam 130.500 mortos; milicianos estrangeiros 1.703; curdos democratas 12.500; rebeldes 57 mil; e 67.500 extremistas de grupos como Estado Islâmico e Hayat Tahrir al-Sham, braço da Al-Qaeda. Os dados oficiais não consideram os desaparecidos e mortos em prisões. Já os refugiados, de acordo com a ONU, são 5,5 milhões. Existem estimativas de que o número real de mortos no conflito podem ultrapassar a marca de 500 mil. Enquanto isso, no Brasil, o governo do presidente Jair Bolsonaro parece se esforçar para superar também essa marca.

Em 2020, foram registradas 88 mil mortes na guerra da Síria, enquanto a covid-19, no mesmo período, matou 279 mil brasileiros. A média diária atual de mortes por covid-19 no Brasil, por volta de 2.800, é mais de 20 vezes a média de vítimas no país do Oriente Médio durante todo o conflito. ” Em 10 anos de Guerra na Síria, 388,6 mil pessoas morreram. No Brasil, já foram 279,2 mil em um ano de covid. As 2.842 vítimas de hoje equivalem a mais de 20 vezes o número médio diário de mortes na guerra”, afirma o doutor em ciências sociais Andrei Netto em seu perfil no Twitter.

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Mortes da guerra na Síria já foram superadas pela letalidade da covid-19 no Brasil (Foto: Alexandro Auler/Revista do Brasil/jun 2015)

Desaparecidos da covid-19

As mortes pela covid-19 no Brasil também são subnotificadas. Como a pandemia foi negligenciada pelas autoridades federais, o país carece de capacidade de testes. Além disso, o colapso de sistemas hospitalares provocou um movimento de mortes em casa, sem assistência devida, ampliando a defasagem nos dados.

De acordo com dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do dia 25 de março, quando o Brasil somava 320 mil mortes, havia uma diferença nos dados de quase 100 mil vítimas. “Essa diferença de quase 100 mil para as mortes por SRAG é basicamente covid-19”, afirma Leonardo Bastos, estatístico da Fiocruz), ao jornal Valor Econômico.


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“A maior parte dessas mortes excedentes de síndromes respiratórias são covid-19”, diz o epidemiologista Jesem Orellana, também ao Valor Econômico. “Não há razão técnica, objetiva, para não serem”, completa o pesquisador.

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Número de mortes pela covid-19 é subnotificado, assim como o da guerra civil síria (Foto: Alexandro Auler/Revista do Brasil/jun/2015)

Paralelos

As comparações entre as vítimas de um conflito geopolítico internacional sangrento e a covid-19 são marcantes. O número de mortes no Brasil só é superado pelos Estados Unidos, que soma 574 mil vítimas. Isso, em tempos de paz. O líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST) João Pedro Stédile faz paralelos entre os dois países e o conflito sírio. “Nos últimos anos os Estados Unidos invadiram Afeganistão, Iraque, Líbia e Síria, causaram milhares de mortos civis e perderam as quatro guerras! Mas agora estão perdendo a guerra para si mesmos: mortos, frutos da insanidade do governo Trump. Como aqui, na sua filial”, disse.

Donald Trump deixou o governo dos Estados Unidos no dia 20 de janeiro. Ele entregou o país com 420 mil mortos por covid-19. Seu sucessor e opositor, Joe Biden, mudou as diretrizes de combate à covid-19, incluindo o início de um programa ousado de vacinação, o que derrubou a média de mortes no país. Já no Brasil, sem mudança no governo, Bolsonaro segue com postura negacionista, minimiza a pandemia, ridiculariza uso de máscaras e promove constantemente aglomerações. O presidente chegou a disseminar mentiras sobre a segurança de vacinas e impedir que o Brasil tivesse acesso veloz a elas.

Faltar vacinas

A lentidão do governo na aquisição de vacinas começou no ano passado, com Bolsonaro negando a compra de 70 milhões de doses da Pfizer. Além disso, o presidente atacou abertamente a CoronaVac, produzida em parceria pelo Instituto Butantan, em São Paulo. Chegou a dizer que a vacina, que hoje representa 80% de todas doses aplicadas no país, poderia provocar “anomalias” e transformar “pessoas em jacarés”.

Agora, a realidade cobra soluções. Ontem (22), em audiência pública no Senado, secretários estaduais de Saúde apontaram para a escassez de vacinas. “Eu acho que a gente tem um cenário dificílimo. Para os próximos dois meses a gente deve ter um cenário de escassez de vacinas, isso é preciso ser dito. A gente não sabe o que vai acontecer com a Índia, onde há um recrudescimento muito grande da doença, que é o maior exportador de IFA (Insumo Farmacêutico Ativo)”, disse o presidente do Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass), Carlos Eduardo Lula, secretário da pasta do Maranhão.

O presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Wilames Freire, reforçou a dificuldade. Para ele, falta transparência e respostas eficientes do Ministério da Saúde na aquisição de vacinas. “O que falta é vacina. O cronograma apresentado sempre é reduzido pra baixo”, disse.

As incertezas acontecem em um momento em que morrem quase 3 mil pessoas por dia em média pela covid-19 e mais de 60 mil são infectadas. Desde novembro, o vírus circula no país sem controle. A Fiocruz descreve o cenário como “maior crise sanitária e hospitalar da história do Brasil”. Em tempos de “paz”, o país apresenta média de vítimas diárias por um vírus 20 vezes superior às mortes de um país em guerra civil. Lá e cá, a morte e o descaso regem crises profundas e sem perspectiva de soluções.


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