Dia Mundial da Saúde

Bolsonaro transformou Brasil em ‘campo de extermínio’, diz especialista

Sem ter o que comemorar neste dia, Brasil vive uma pandemia sem controle e a escalada de mortes, desemprego e fome. Mesmo assim governo corta recursos

Amazônia Real
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Necropolítica: Bolsonaro aprofunda desestruturação da saúde iniciada com Temer após golpe de 2016

São Paulo – O governo do presidente Jair Bolsonaro transformou o Brasil em um “campo de extermínio”, onde o novo coronavírus tem salvo conduto para se espalhar com velocidade e fazer um número crescente de mortes, que já chega a quase 4 mil pessoas por dia, em média. O alerta é da médica sanitarista Lúcia Souto, presidente do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), que neste Dia Mundial da Saúde só vê motivos para lutar.

“O Brasil tem 3% da população mundial. Porém, 33% das mortes diárias pela covid-19 são registradas no país, o que é uma grande desproporção. É uma consequência da falta de coordenação nacional da pandemia, que é premeditada. Não há auxílio financeiro às populações vulneráveis, que já enfrentam o desemprego, a fome e a doença diante de um claro aprofundamento da desigualdade. Tanto que é entre os pobres que a covid-19 faz mais vítimas”, disse Lúcia, em entrevista à RBA.

O “campo de extermínio”, segundo ela, poderia ter sido evitado com medidas conhecidas, já adotadas em países com melhores resultados no controle da pandemia. É o caso do Vietnã, que, com pouco mais de 90 milhões de habitantes, registrou 35 mortes. O Brasil tem 211 milhões e já passou dos 330 mil mortos. O governo vietnamita impôs o lockdown e hoje vacina a sua população. Além de não adotar a mesma estratégia, o Planalto entrou em conflito com governadores e prefeitos que defenderam a alternativa, foi à Justiça contra eles e ainda demorou na compra das vacinas.

Lockdown com vacina

A vacinação segue lenta e ainda enfrenta ameaças do setor privado. Se conseguir autorização para comprar o imunizante direto dos fabricantes, estará enfraquecendo o Plano Nacional de Imunizações (PNI), uma das políticas de saúde brasileiras mais bem sucedidas.

“Para sair da atual situação, o Brasil precisa combinar lockdown com a vacinação em massa, para interromper a velocidade da transmissão enquanto pessoas vão sendo imunizadas. E para conter a fome, pagar auxílio emergencial de R$ 600 para todas as famílias vulneráveis. Mas não é o que está acontecendo, embora o país tenha condições de adotar todas essas medidas”, disse.

Para piorar a situação, o orçamento da saúde, aprovado na Câmara, não acompanha o agravamento da pandemia. Deixa de fora cerca de R$ 36 bilhões, correspondentes à complementação permitida pelo decreto do estado de calamidade, que não foi renovado para 2021. Sem ele, o orçamento volta a obedecer à Emenda Constitucional (EC) 95/2016, do teto de gastos. São recursos que farão falta na compra de vacinas, por exemplo. Ou na abertura de novos leitos. Pelas contas do Cebes, desde 2018 o SUS já perdeu R$ 22,5 bilhões devido à EC 95.

Tiê Vasconcelos/Voz das Comunidades
Em meio à pandemia, a fome atinge famílias que moram nas favelas brasileiras

Cinco anos de retrocessos no SUS

Considerado “a marca do golpe”, o teto de gastos da União foi aprovado no primeiro ano do governo de Michel Temer (MDB-SP), em dezembro. A medida congela por 20 anos os investimentos nas áreas sociais. Com isso, mesmo que o PIB brasileiro tenha um grande crescimento no ano, o orçamento de cada área tem de ser o mesmo do ano anterior, corrigido apenas pela inflação. Por isso a EC 95 está diretamente associada à desestruturação do SUS a partir de 2016.

Na época, um estudo do Ipea estimou perda para a saúde da ordem de R$ 654 bilhões ao longo de 20 anos. Mas isso em um cenário conservador, com o PIB crescendo 2% no ano. Caso seja de 3%, a estimativa chega a R$ 1 trilhão de perda. Ou seja, De acordo com a Comissão de Orçamento e Financiamento do Conselho Nacional de Saúde (CNS), o SUS já havia deixado de receber R$ 22,5 bilhões em 2019.

Logo que tomou posse, em maio de 2016, o governo já mostrou ao que veio. O ministro da Saúde, deputado Ricardo Barros (PR-PR) – atual líder do governo na Câmara –, defendeu o encolhimento do SUS ao tamanho do orçamento. Ou seja, em vez de trabalhar pelo aprimoramento do sistema para melhorar a assistência para todos, como manda a Constituição, propôs um SUS minguado, compatível com o orçamento que também passaria a ser mais e mais encolhido. Em síntese, um SUS pobre para a população mais pobre.

Sem internação e cirurgia

Pela lógica, a lacuna passa a ser preenchida pelo setor privado. Em 2017, o Ministério da Saúde criou um grupo de trabalho na Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para definir modalidades dos chamados “planos populares”. Em geral, cobrem consultas e exames simples, deixando para o SUS ainda mais subfinanciado a cobertura de internações, cirurgias e procedimentos de alta complexidade. Pior para a população e para o sistema público, bom para os empresários do setor.

A Política de Saúde Mental também entrou no alvo com propostas que põem em risco conquistas da Reforma Psiquiátrica. Por meio da Portaria 3.588/2017, o governo Temer alterou regras da rede de atenção psicossocial, com o objetivo de fortalecer as internações em hospitais psiquiátricos e criar leitos em hospitais gerais. A proposta foi aprovada em 21 de dezembro de 2017, sem que a sociedade tivesse se manifestado.

No mesmo ano, o governo Temer publicou o documento “Coalizão Saúde Brasil: uma agenda para transformar o sistema de saúde”. Elaborado pelo Instituto Coalizão Brasil, visa a construção de um sistema de saúde em que os setores público e privado construam uma rede integrada de cuidados contínuos, que pressupõe maior participação da iniciativa privada na gestão dos serviços.

Saúde da família

Em agosto de 2017, sem debates com a sociedade e deixando de fora o Conselho Nacional de Saúde, o Ministério da Saúde, o Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems) e Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass) aprovaram mudanças na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB).

Na prática, tiraram do Programa de Saúde da Família e dos agentes comunitários o papel estratégico e prioritário para a expansão do acesso à saúde e alteraram o financiamento para este nível de atendimento básico, do qual fazem parte as unidades básicas de saúde.

Danilo Ramos/ RBA
Médica cubana acompanha paciente em UBS no Embu das Artes. (Foto: Danilo Ramos/RBA)

Governo Bolsonaro

Em julho de 2019, já no governo de Jair Bolsonaro, os planos de saúde enviaram à Câmara uma minuta de projeto de lei com 89 artigos. Em resumo, a proposta assinada pela Federação Nacional da Saúde (FenaSaúde) reivindica mudanças na atual lei do setor para favorecê-los.

Entre as propostas, a redução de coberturas e atendimentos, liberação de reajustes de mensalidades, fim do ressarcimento ao SUS e alívio às multas por maus serviços. Em resumo, tornar ainda mais insignificante o papel da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). A proposta, que tem simpatia do Congresso e do governo,

Em novembro, o então ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta anunciou alteração do modelo de financiamento da atenção primária – ou básica – à saúde. Entre as mudanças estão a forma de cálculo dos repasses da União aos municípios. Até então, a conta era feita com base no número de habitantes. Mas o governo Bolsonaro passou a se basear apenas no número de pessoas cadastradas nas unidades básicas de saúde. Municípios populosos, como São Paulo, devem perder metade do recurso.

Menos recursos e menos médicos

A atenção básica à saúde voltou a entrar na mira de Bolsonaro em 27 de outubro de 2020, por meio da publicação de um decreto autorizando o início de estudos sobre a possibilidade de conceder à iniciativa privada as Unidades Básicas de Saúde (UBSs). O anúncio mobilizou a sociedade, que prontamente repudiou a medida. “Não aceitaremos a arbitrariedade do presidente da República”, disse na época o presidente do CNS (Conselho Nacional de Saúde), Fernando Pigatto, em vídeo que viralizou.

Por questões ideológicas, o governo Bolsonaro extinguiu o programa Mais Médicos, perdendo mais de 8 mil profissionais cubanos. E vetou o processo de revalidação de diplomas nas universidades privadas, deixando parte da população sem assistência médica. Bolsonaro finalizou um processo que começou com Michel Temer. Um ano após o golpe, havia menos de 16 mil médicos. Em 2013, quando foi criado no governo de Dilma Rousseff, o programa levou mais de 18 mil profissionais às periferias das grandes cidades e aos municípios do interior.

Farmácia Popular

Iniciativa criada no governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o Farmácia Popular distribui gratuitamente medicamentos para o controle da pressão alta, diabetes, asma e outras doenças crônicas muito comuns, associadas ao agravamento da saúde de pacientes com covid-19. Mas o programa vem sendo esvaziado por Bolsonaro.

No primeiro ano da pandemia, foram distribuídos medicamentos para 20,1 milhões de pessoas em todo o país. Uma diminuição de 1,2 milhão em relação ao ano anterior. O orçamento do programa, que em 2020 era de R$ 2,7 bilhões, caiu para R$ 2,5 bilhões em 2021. O número de farmácias parceiras também caiu em 2020, passando para 30.988 unidades. O menor patamar desde 2013.

Mortes precoces

Em meio a tantos retrocessos, é de se supor um aumento das mortes precoces, causadas por doenças infecciosas e deficiências nutricionais até 2030. De acordo com um levantamento do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA), em colaboração com pesquisadores da Universidade de Stanford e do Imperial College de Londres, esse aumento deverá ser da ordem de 8,6%. O número equivale a um aumento de quase 50 mil óbitos considerados evitáveis.


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