O passado te condena

‘Nada apagará a história’, diz fundador da Anvisa sobre a condução de Bolsonaro na pandemia

‘Antes tarde do que nunca’, diz Gonzalo Vecina sobre a mudança da postura do presidente provocada pelo discurso de Lula. Mas lembra que é urgente reduzir os casos e a mortalidade na pandemia

EBC
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Com uma pandemia sem controle, Gonzalo Vecina lembra que mudança não apaga o passado de Bolsonaro. "Eu sei o que você fez ontem. A história registrou o que você fez"

São Paulo – Para o médico infectologista e ex-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Gonzalo Vecina, “antes tarde do que nunca” a mudança de tom do presidente Jair Bolsonaro sobre a condução do governo federal para o enfrentamento da pandemia no Brasil. Após o presidente sinalizar, nesta quarta-feira (10), com a defesa das vacinas contra a covid-19 e usar máscaras, o professor da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) acredita que Bolsonaro irá tentar corrigir sua postura. 

As estratégias anunciadas são básicas e consolidadas na maioria dos países. Mas impressionou parte da opinião pública por vir de um governo com integrantes habitualmente negacionistas, contrários às medidas de proteção à doença e que, desde o início da pandemia, em março passado, vêm se omitindo das responsabilidades, como denunciam diversas autoridades. Contudo, o discurso de Bolsonaro também trouxe a defesa de tratamentos que não têm qualquer eficácia científica comprovada. 

O anúncio do governo também foi sobretudo favorecido pelo discurso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que, horas antes, explanou seu descontentamento com a situação do país. O que “mudou completamente o quadro político”, na avaliação de Vecina, e fez com que “uma nova discussão emergisse”. Em entrevista a Marilu Cabañas, do Jornal Brasil Atual, o fundador da Anvisa também ressalta que apesar do tom de Bolsonaro, nada apagará a forma como ele conduziu o país a este que é o pior momento da crise sanitária. “Eu sei o que você fez ontem. A história registrou o que você fez. Nós sabemos o que o Lula fez e sabemos o que o Bolsonaro fez. Nada apagará a história”, aponta. 

Fizemos relaxamento social

“Então espero que nesse meio tempo o atual presidente, enquanto assim continuar, faça o melhor pelo Brasil. Não quero que ele faça o pior, que a gente morra ou sofra mais. Quero que ele compre vacinas, que entre junto com os estados por essa luta pelo isolamento social e a redução dos casos. Temos que reduzir a mortalidade, seja lá com quem quer que esteja na presidência da República”, acrescenta o infectologista. 

O quadro é preocupante, como reforça Vecina. Pela primeira vez, o Brasil registrou mais de 2 mil mortes provocadas pela covid-19 em 24 horas, com 2.286 pessoas perdendo a vida. E pelo 12º dia consecutivo, há também um recorde na média de mortes, 1.626 na última semana. O país totaliza até agora 270.656 óbitos. Em paralelo, brasileiros estão morrendo também na fila de espera, sem conseguir vaga nas unidades de terapia intensiva (UTIs). Em Minas Gerais, ao menos 14 crianças, de até um ano, morreram em decorrência da doença. 

Há ainda um aumento no número de jovens internados e escassez de vacinas para a imunização coletiva, o que já compromete a aplicação da segunda dose em alguns locais. Gonzalo Vecina observa que “estamos vivendo as consequências dos nossos atos”. “Fizemos muito relaxamento social”, afirma. “E enquanto este momento de distanciamento e isolamento social, que está sendo proposto, não tiver acontecendo, – ainda não estamos vivendo isto plenamente –, vamos continuar tendo uma explosão de casos. Hoje foram 2.300, amanhã serão 3 mil mortos, infelizmente.” 

Sabotagem do governo

A situação da pandemia já coloca o Brasil como uma ameaça global. O número de mortos já ultrapassa inclusive o de países com populações maiores, como nos Estados Unidos, estimada em quase 329 milhões de pessoas, ante 212 milhões de brasileiros. Além de se tornar foco do surgimento de variantes do novo coronavírus, algumas delas mais letais e mais transmissíveis.

E no estágio mais grave da pandemia, o governo Bolsonaro cortou verba de 72% dos leitos de UTI para pacientes com a covid-19. O número de leitos que recebem financiamento federal, em todo o país, caiu de 12.013 para 3.372 leitos em março. A atitude, reportada pela RBA, é “criminosa”, segundo denuncia o fundador da Anvisa.

De acordo com Vecina, já havia poucos leitos de UTI antes mesmo da crise sanitária. O aumento de vagas, garantido por pressão social, era inclusive “uma esperança de que continuasse a valer para que tivéssemos melhor cuidado na assistência também sem covid-19”, conta. “E agora esse leitos foram gradativamente sendo retirados, silenciosamente, como se ninguém fosse perceber. Temos acompanhado e denunciado isso diariamente. O resultado disso está aí”, diz o infectologista, em referência ao colapso no sistema de saúde de todo o país. 

Levantamento da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), divulgado nesta terça (9), aponta que 25 das 27 capitais brasileiras estão em situação crítica, com uma taxa de ocupação superior a 80% dos leitos de UTI destinados à covid-19. 

Assista à entrevista 

Redação: Clara Assunção