No norte e no sul

Covid-19 nos EUA, Canadá e Argentina: relatos da pandemia na América

Conversa com brasileiros em diferentes partes da América traz visões distintas da convivência com a pandemia. EUA já têm 15,7 milhões de casos de covid-19

Xandra Stefanel
Xandra Stefanel
Metrô de Montreal: 'A maneira de pensar o cidadão é a maior diferença'

São Paulo – País de dimensão continental, mas com “apenas” 38 milhões de habitantes, o Canadá registrou até a última quinta-feira (10) cerca de 442 mil casos de covid-19 e pouco mais de 13 mil mortes. A taxa de letalidade está próxima de 350 mortos pela covid-19 a cada milhão de habitantes, pouco mais de um terço da do vizinho Estados Unidos. No Brasil, a letalidade é de cerca 855/1 milhão. Esse contraste preocupa a jornalista brasileira Xandra Stefanel, que vive na cidade de Montreal desde 2012, onde trabalha num estúdio de ioga e atua como fotógrafa.

Casada e com um filho de quase 2 anos, ela muitas vezes se desespera com as condições da família que está no Brasil. “Posso comparar, continuo acompanhando as notícias. É uma diferença gritante”, diz.

Xandra e o marido, Felipe Pio, que trabalha com cinema, receberam uma ajuda de custo do governo do Canadá diante da paralisação das atividades pela pandemia da covid-19. Foram 2 mil dólares canadenses para cada um (R$ 8 mil), durante meses. “A gente viveu isso aqui vendo o que acontecia no Brasil. Tanta insegurança. O governo querendo dar R$ 200 de ajuda para as pessoas”, revolta-se, sobre o auxílio emergencial que passou a ser de R$ 600 após pressão da oposição no Congresso Nacional. Agora, está reduzido a R$ 300 e, no que depender de Bolsonaro, com os dias contados para acabar.

“Claro que são realidades econômicas diferentes, mas a maneira de pensar o cidadão é a maior diferença. Pensar como pessoas com necessidades básicas e o governo indo em socorro delas, o que também faz com que a economia não desaqueça tanto”, avalia. “Isso aconteceu aqui e foi tranquilizador.” O Canadá oferece, ainda, ajuda financeira para que as empresas consigam se manter até que a situação seja normalizada.

Sem volta

O casal tinha planos para voltar para o Brasil e criar o filho perto da família. “Mas já não consigo mais me imaginar voltando para um país onde eu não seria respeitada pelo governo. Digo isso de forma geral e posso dizer agora sobre a pandemia. Um governo que não dá a importância que precisa ser dada para essa situação gravíssima. Que mensagem passa para a população? Que pode continuar a vida normalmente como se nada estivesse acontecendo. Não me surpreende o número de casos aí, tão alto.”

Xandra relata que se sente segura no Canadá. Que as pessoas acreditam no governo porque vêm tudo sendo feito para tornar a situação melhor. “Estamos numa segunda onda e mais bem preparados para enfrentá-la”, diz a jornalista. “Aqui os números são anunciados todos os dias pelo governo. E avisam sobre os cuidados, o distanciamento, o uso de máscara. Oferecem recursos para ficar em casa quem não é do serviço essencial. O oposto daí. A cada gripe podemos fazer teste gratuito e o resultado chega na nossa caixa de e-mail. Sempre me pergunto qual seriam os números aí se fosse como aqui.”

E lamenta: “O país do qual eu saí acabou, não existe mais”. Ela fala da saudade e lembra do orgulho em dizer que é brasileira. “Vim para cá durante o governo Dilma (Rousseff), numa das melhores fases que o país teve. Hoje, quando falamos que somos brasileiros, as pessoas olham com cara de dó”, compara. “Como voltar a um país devastado por esse desgoverno, que promove a desinformação, que está na contramão de todas as boas práticas em todos os setores? Que promove intolerância? Tenho esperança que isso mude. Enquanto não acontece, vamos ficando por aqui.”

Covid-19 nos EUA

Divulgação
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Flórida é o terceiro estado mais afetado nos EUA, com mais de 1 milhão de casos de covid-19. Disney reabriu em julho, depois de três meses fechada (Divulgação)

O país campeão de mortes e casos de covid-19 vive também uma crise política. Derrotado nas eleições presidenciais dos Estados Unidos, Donald Trump não facilita a transição para o governo do eleito Joe Biden. Às portas do inverno, os leitos de UTI nos hospitais já estão abarrotados e os mortos se contam aos milhares, diariamente. Os EUA somam 15,7 milhões de casos de covid-19 e cerca de 295 mil mortes, com taxa de letalidade perto de 900 para cada milhão de habitantes.

Gabriel de Souza, 35 anos, vive há 15 em Orlando, na Flórida. O brasileiro trabalha na área da construção civil, considerada essencial, e pouco afetada pelas restrições impostas pela pandemia do novo coronavírus. Ele lembra o início dos dias com ruas desertas, mercados com prateleiras vazias. “Aqui, como no Brasil, tentaram tomar algumas medidas, mas que não foram muito fiscalizadas. Quem saía não era questionado.”

A ajuda do governo norte-americano resumiu-se a um cheque de US$ 1.200 para todos. Alguns setores receberam auxílio governamental, como o da educação. Com a transição entre os presidentes, Gabriel não acredita que estejam sendo tomadas novas medidas de combate à covid-19 pelos EUA. “Agora não sabemos o que vai acontecer, continua tudo muito incerto”, diz. “Está praticamente tudo aberto, uma vida quase que normal. O enfrentamento da covid-19 nos EUA está nas mãos das pessoas.”


Na Argentina

Alertas se espalham pela Argentina. Governos central, de províncias e municípios dialogam (Rogério Tomaz Jr.)

Rogério Tomaz Júnior faz mestrado em Estudos Latino-Americanos na Universidade Nacional de Cuyo, na cidade de Mendoza. Está na Argentina desde o início do ano. Em 20 de março, teve início o isolamento social preventivo e obrigatório em todo o território argentino, com uso obrigatório de máscara em locais públicos. Só tinham permissão para circular profissionais de áreas essenciais, como saúde, transporte, segurança pública, logística. Em meados de abril, outras profissões passaram a ser liberadas, e em maio o comércio começou a reabrir com restrições. “Com vários protocolos, rodízio com restrição de circulação para dias e horários (conforme o número da identidade). Tudo ajudou a segurar o contágio”, diz Rogério.

Inicialmente, a pandemia pegou forte em Buenos Aires e bairros mais populosos que têm conexão com a região metropolitana da capital. Além do Chaco, que faz fronteira com o Paraguai. No resto do país, afirma o brasileiro, os números aumentaram a partir de julho e agosto, com o inverno e as atividades comerciais quase normalizadas. A Argentina, com cerca de 45 milhões de habitantes, tem 1,5 milhão de casos e 40.500 mortes (letalidade de cerca de 900/milhão de habitantes). A taxa de mortes pela covid-19 se assemelha à dos Estados Unidos. Mas enquanto o governo Trump atacou o sistema de saúde, o de Alberto Fernández começou a reconstruir.

Além de se pronunciar frequentemente para passar orientações de governo, Fernández valoriza a busca pela imunização. O presidente anunciou na quinta (10) acordo com a Rússia para aquisição da vacina Sputinik V – 10 milhões de doses. O governo aguarda aprovação da Administração Nacional de Medicamentos, Alimentos e Tecnologia Médica. “Serei o primeiro a ser vacinado para que ninguém tenha medo”, afirmou.

Erros e acertos

Rogério relata que desde maio as oposições políticas ao governo de Alberto Fernández cobravam o fim do isolamento e a flexibilização da quarentena, com apoio de muitos comerciantes. “O que aconteceu? Aqui em Mendoza, onde até a primeira semana de julho tinha 180 casos e nove mortes, dois meses depois tinha mais de 20 mil casos e 300 mortos. Agora, em dezembro, já são mais de 50 mil casos na cidade e mais de mil mortes.”

Para ele, a adoção rápida da quarentena severa serviu para atrasar por um bom tempo a curva de contágio e preparar o sistema de saúde. “Por conta do governo Macri (Mauricio Macri, cujo mandato se encerrou em 10 de dezembro de 2019), ultraneoliberal, o sistema de saúde da Argentina estava praticamente destruído. Em pouco mais de três meses o governo nacional priorizou a construção de hospitais e o aumento de leitos de UTI em 40%”, relata.

Ele destaca também as medidas de ajuda econômica adotadas pelo governo Fernández, com apoio de prefeitos e governadores, que desde o início atendeu a todos os setores da economia. Empresas receberam subsídios para pagar os salários e não demitir. Empréstimos a juro zero também foram liberados – isso para um país com inflação de 30% ao ano.

“Acho que os números aqui não são bons o suficiente para que o país seja modelo, mas, no que compete ao governo, fizeram muito. E sempre envolvendo todas as províncias. Toda semana o presidente fala sobre números, medidas, mudanças, apresenta casos positivos, problemas, de forma muito transparente. Tudo muito sério”, compara.


Edição: Paulo Donizetti de Souza


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