Pandemia

Imunidade de rebanho é ‘descabida e antiética’, protesta cientista

Para epidemiologista da Fiocruz, a hipotese de imunidade de rebanho não deveria sequer ser ventilada. Trata-se do descaso com inúmeras vidas que não precisariam ser ceifadas pela covid-19

Roberto Parizotti
Roberto Parizotti
"Milhares continuam sendo infectados e adoecendo e outras centenas morrendo e, esse tipo de narrativa, só ajuda a consolidar a ideia de que precisamos forçar a exposição da população", disse Jesem Orellana

São Paulo – O Brasil registrou 831 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas. Com o acréscimo, o número de vítimas no país desde o início do surto, em março, chegou a 139.808. Os dados da doença provocada pelo novo coronavírus são divulgado diariamente pelo Conselho Nacional dos Secretários de Saúde (Conass). Já o número de novos casos de covid-19 foi de 32.817 de ontem para hoje (24). Desde fevereiro, o país soma 4.657.702 casos. Os registros desta quinta-feira seguem o padrão médio das últimas três semanas, com média móvel em cerca de 800 mortes e 30 mil novos casos por dia. Isso, sem contar a ampla subnotificação, já que menos de 9% dos brasileiros passou por algum tipo de teste.

Mesmo diante das centenas de mortes diárias, autoridades e parte da imprensa passam a relatar que algumas cidades podem estar chegando a uma “imunidade natural de rebanho“. Natural, pois tal imunização viria do amplo contágio e não de uma vacinação, por exemplo, que seria uma imunidade de rebanho desejada. Para o epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Jesem Orellana, a suposição é prematura e acarreta em riscos para a população.

Após forte ascensão e queda no início da pandemia, curva epidemiológica em Manaus volta a mostrar tendência de crescimento

Laboratório do mal

“É descabida a hipótese de eventual imunidade de rebanho natural, além de nos remeter a uma discussão antiética”, disse. O estudo é focado na cidade de Manaus, que viveu uma explosão de casos no início da pandemia, o que provocou caos no sistema de saúde local. Justamente a capital amazonense é referida no estudo publicado no site medRxiv – página norte-americana de “pré-artigos” científicos, isto é, de teses ainda não comprovadas.

Jesem, que trabalha em Manaus, lamenta a postura experimental a qual a população brasileira é submetida. O Brasil pouco ou nada fez para conter o avanço da covid-19. Não à toa, é o segundo no mundo com mais mortes, atrás apenas dos Estados Unidos, e testando até 100 vezes menos.

“Manaus não pode continuar sendo um laboratório a céu aberto ou tratada como local de experimentos naturais desumanos. É nosso dever defender a boa ciência e o SUS, em particular a vigilância em saúde nos territórios mais vulneráveis. Vidas importam”, alertou. “Milhares continuam sendo infectados e adoecendo e outras centenas morrendo e, esse tipo de narrativa, só ajuda a consolidar a ideia de que precisamos forçar a exposição da população a maiores taxas de infecção e contato com o vírus”, completou.

Segunda onda

No caminho oposto, o cientista da Fiocruz vê tendência de aceleração nos casos e mortes, e volta a falar em segunda onda. “Se observou aumento do excesso de mortes respiratórias e de mortes por covid-19 no período entre 12 de julho e 22 de agosto, bem como da média de internações diárias entre 23 de agosto e 19 de setembro. Seguimos firmes e convencidos de que já foi perdida a oportunidade de frear de forma rápida e contundente o contágio do novo coronavírus.”

“Há um nítido, sustentado e lamentável aumento na incidência (casos novos) de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), desde o início de agosto. Reforço que esse aumento de casos de SRAG refletem a ocultada transmissão comunitária do novo coronavírus em Manaus e que ela só não foi mais nitidamente observável semanas atrás porque testa-se pouco e mal no Amazonas”, finalizou para a RBA. Com a pandemia, a síndrome respiratória matou 37 vezes mais gente até o início de setembro, na comparação com o mesmo período do ano passado.


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